Trilhas da Cena

Banner preto com texto em branco e vermelho "O Teatro e a Democracia Brasileira Parte Um" e logotipos da Funarte, do Ministério da Cultura e do Governo Federal do Brasil, além de informações sobre o programa e o financiamento.
Banner promovendo um projeto de teatro com logotipos da Funarte, do Ministério da Cultura e do Governo Federal do Brasil. O texto diz: "O Teatro e a Democracia Brasileira Parte Um" e menciona o Programa Funarte Retomada 2023 - Teatro.

12 PESSOAS COM RAIVA

Pandêmica Coletivo Temporário de Criação (CE, ES, PA, RJ, RN e RS)

Direção: Juracy de Oliveira

Estreia: 2020

Página atualizada em 12/11/2025

Sinopse

12 pessoas com raiva simula um júri que é convocado a se apresentar online, por contra da pandemia do COVID-19, e deve chegar a um veredito unânime sobre um assassinato envolvendo pai e filho. Tal situação poderia ser resolvida rapidamente, não fosse a presença de uma mulher que, não estando totalmente convencida sobre a culpa do garoto, vota por inocente. A partir daí, acompanhamos de perto conflitos e arquétipos típicos da atual sociedade brasileira.

O espetáculo

A experiência estreou em 12 de maio de 2020 e realizou diversas exibições online com grande sucesso de público desde então, além de ser escolhido para a abertura do 14o Cine BH – Internacional Movie Festival, em 2021.

 

Idealizado pelo diretor cearense Juracy de Oliveira, que também assina a tradução e adaptação do texto, a equipe reúne artistas do Ceará, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e São Paulo.

12 pessoas com raiva apresenta uma importante decisão: um elenco misto, composto por homens e mulheres. Em todas as versões oficiais e cinematográficas, o elenco era composto por 12 homens (como sugere o título original Twelve Angry Men e o título das versões brasileiras 12 homens e uma sentença). Além desta escolha, esta montagem também prioriza a diversidade nas vozes e corpos do elenco que dá vida às 12 personagens.

 

O diálogo com o Brasil é a base desta adaptação feita pelo Pandêmica Coletivo Temporário de Criação, que trata do julgamento de um assassinato entre pai e filho, moradores de um bairro periférico, trazendo um contexto social para a discussão. Ao transpor a peça para o nosso país, esse elemento social se potencializa ao nos perguntarmos: quem são as pessoas que vivem nas periferias das grandes cidades e quais os imaginários e estigmas que construímos e perpetuamos sobre esses territórios?

O diálogo ainda se intensifica pela própria constituição do Pandêmica, um coletivo feito por artistas de várias partes do Brasil propondo um deslocamento geográfico, ético e artístico. Então, com 12 pessoas com raiva, colocamos em cena a pluralidade de vozes e experiências desses muitos Brasis.

 

Foram realizadas  temporadas e apresentações até maio de 2021.

O lugar da raiva na democracia brasileira

por Daniele Avila Small

12 Angry Men (12 homens com raiva, numa tradução direta para o português brasileiro) é uma peça escrita por Reginald Rose para um programa de teleteatro muito popular nos Estados Unidos em 1954. Internacionalmente conhecida por sua versão cinematográfica, lançada poucos anos depois da estreia, a peça foi montada pela primeira vez no Brasil em 2014 pelo grupo TAPA, com o título do filme como lançado no Brasil, Doze homens e uma sentença.

 

Em maio de 2020, ainda nos primeiros meses da pandemia de COVID-19, estreia uma nova versão pelo Zoom, com tradução, adaptação e direção de Juracy de Oliveira, com o título 12 pessoas com raiva. Com essa peça, entra em cena a plataforma Pandêmica – Coletivo Temporário de Criação, que dali por diante tomaria para si, com dedicação diligente, a função de promover criações de teatro online, espaços de experimentação e formação, debates públicos e trocas artísticas entre agentes de diversas cidades do Brasil, proporcionando oportunidades de trabalho para profissionais das artes da cena e momentos de fruição estética para espectadores de todo o país em um momento de imensa vulnerabilidade física, mental, emocional, social e econômica em escala mundial. A coragem de assumir focos de liderança generosa em tempos como aqueles não é nada banal. O que se fez no teatro online entre 2020 e 2022 é de profunda relevância para a história do teatro brasileiro.

 

O momento histórico em que essa peça foi criada é um dado incontornável da sua relevância. Quem estava fazendo teatro online naqueles primeiros meses de isolamento no Brasil ainda tinha que lidar com colegas que disfrutavam de segurança financeira deslegitimando abertamente aqueles que estavam buscando um modo de trabalhar, mesmo que as possibilidades de remuneração fossem muito baixas. A outra opção, afinal, era remuneração nenhuma. Diante disso, diversos artistas e pesquisadores se puseram a pensar criticamente sobre a relação do teatro com outras mídias na história e se deram conta de que o teatro online não surgiu com a pandemia. Desde que há acesso público à internet, artistas de teatro passaram a fazer peças com esse recurso. Embora predominantemente em língua estrangeira, há considerável produção de pensamento sobre o que até então se convencionara chamar teatro digital. No Brasil, houve iniciativas nesse sentido, como o projeto Teatro para Todos, em 2010, e algumas montagens que passaram pelo teatro Oi Futuro, no Rio de Janeiro, que dava atenção especial a projetos multilinguagem. O Teatro Oficina fazia transmissões online das suas peças há vários anos, inclusive utilizando as redes sociais.

 

Historicamente, o teatro sempre tomou para si, como experimentação de linguagem e/ou modo de difusão, os recursos tecnológicos de outras mídias, como o rádio e a televisão. Assim, podemos pensar que a retomada de uma peça criada quase 70 anos atrás para o teleteatro também sinaliza um contato com o passado, com um momento em que a TV foi um poderoso mecanismo de difusão do teatro. A pandemia foi um período de intenso debate crítico sobre as potencialidades e limitações das artes da cena. Não à toa, 12 pessoas com raiva foi a abertura da 14ª Cine BH, edição online do festival de cinema da capital mineira cuja mostra temática se dedicou a projetos de teatro que exploravam a linguagem digital e uma relação mais evidente com o audiovisual. Não é todo dia que uma peça de teatro abre um festival de cinema.

 

Além disso, a iniciativa de montar essa peça aproveitou a logística da interação online para fazer da formação do elenco um encontro de atores e atrizes de diferentes cidades e regiões do Brasil (sem pretensão de totalidade), fazendo frente ao onipresente discurso de protagonismo e pioneirismo do teatro paulista no país. A peça é exemplar do quanto o teatro brasileiro tem a ganhar com criações de equipes interestaduais. O fato de que não há políticas públicas que favoreçam isso ou mesmo que viabilizem a ampla capilaridade de circulação de espetáculos que o país proporcionaria pelas suas dimensões territoriais é mais um sinal de que há pouco entendimento de que o acesso à arte e à cultura é um direito constitucional. O Brasil poderia ser um imenso mercado para o teatro brasileiro, mas são poucos os que desfrutam dessa fatia de recursos e a oferta de espetáculos teatrais por cidade é realmente muito desigual.

A realização de peças durante a pandemia, fosse pelo Zoom, YouTube, Instagram ou outras plataformas, também proporcionou acesso remoto à fruição de espetáculos de teatro a pessoas que estavam passando por um momento muito difícil das suas vidas e que vivem em cidades que não têm a fartura de oferta de espetáculos que grandes centros urbanos como Rio de Janeiro e São Paulo oferecem. Com 12 pessoas com raiva e diversas outras ações, a Pandêmica movimentou e proporcionou acesso a pensamento, criação e fruição durante os difíceis anos de pandemia e de uma situação política assustadora.

Com relação à peça, de início, o título em português dessa montagem se posiciona em dois aspectos importantes. Antes de mais nada, sinaliza a diversidade de gênero no elenco, pois há mulheres entre as personagens que integram o júri da trama: o mundo em que vivemos não pode mais ser o mundo dos homens. Além disso, a montagem de Juracy de Oliveira resgata um elemento fundamental do título original: a raiva. A raiva é um tema quando o assunto é democracia no Brasil. Aterrorizados com a ascensão da extrema direita no país nos anos anteriores e durante a pandemia, passamos a pensar ainda mais seriamente sobre os afetos públicos no ambiente online. Especialmente, o ódio. Mas há que se diferenciar o ódio e a raiva. Defender a raiva contra a apatia, a indiferença.

 

O enredo de 12 pessoas com raiva coloca em jogo uma questão de grande relevância para um debate crítico sobre a democracia brasileira: o direito à justiça. Aqui a justiça não é nada cega, ela enxerga só o que quer. Cor da pele, classe social, gênero e território geopolítico são determinantes para o entendimento geral da expressão “dois pesos, duas medidas”. O texto original do dramaturgo estadunidense já aponta o risco iminente de uma condenação injusta e preconceituosa naquela sociedade nos anos 1950. A montagem da Pandêmica faz uma transposição para a realidade brasileira e para o momento da pandemia. Embora saibamos que a balança viciada não é prerrogativa exclusiva nossa, essa adaptação marca especificidades da nossa cultura.

 

Ao longo do espetáculo, assistimos ao vivo a uma reunião de um júri que se dá pelo Zoom. A situação é grave: o julgamento de um rapaz pelo suposto assassinato do próprio pai, sendo o rapaz um jovem em situação de vulnerabilidade social. O júri só pode optar pela condenação do réu se essa for uma decisão unânime. Num primeiro momento, parece que é isso mesmo o que vai acontecer – ou, pelo menos, o que usualmente acontece. Mas, uma mulher interrompe o fluxo e levanta a dúvida. Os demais personagens manifestam seu descontentamento. Na defesa da prontidão para condenar o rapaz, aparece todo o tipo de preconceito. E aparece também a face vil da superficialidade, da preguiça mental, do desdém pelo comprometimento cívico, a violência passiva da apatia social.

 

Mas o que vemos na peça é a possibilidade do desmonte do ódio – e do uso da raiva. A cada personagem que adere ao benefício da dúvida, os afetos se movimentam. O objeto da raiva se desloca do suposto assassino para o sistema que o condena a priori. Aos poucos, mas com alguma urgência, cada preconceito, cada resquício de ódio de classe e de raça vai sendo exposto, desconcertado, desarmado. Não que a peça termine com personagens redimidos, mensagem ingênua de esperança e promessa de dias melhores, mas chegamos ao fim daquela reunião reconhecendo o valor de cada ação individual, de cada tentativa de conceder a pessoas de quem só vemos o lado mesquinho, a chance de ver a injustiça na sua própria parcialidade e a oportunidade de mudar de ideia.

 

Escrevendo sobre essa peça hoje, em 2025, penso na relação entre o ódio e a raiva. Porque a eficácia do discurso de ódio no Brasil e sua acachapante, desleal e ilegal máquina de multiplicação deixou muita gente apática, descrente de qualquer possibilidade de reação organizada. A raiva, que não precisa ser violenta, mas que acende a agressividade, é um afeto que move. Em uma dessas plaquinhas decorativas, li a seguinte frase: “pessoas que querem a paz precisam se organizar como pessoas que querem a guerra”. O trabalho do teatro e das artes de modo geral é, entre outras coisas, um trabalho sobre os afetos. Os afetos não vêm antes ou depois das ideologias, das mentalidades, da formação. Eles vêm junto, sempre, e não são de pedra.

 

Não é só a ditadura, a extrema direita ou o centrão que nos tiram do sério. Passamos raiva com a democracia brasileira e com os políticos de esquerda também. Nesse sentido, essa peça é exemplar do debate que este projeto, O teatro e a democracia brasileira, deseja colocar em pauta. Não basta lutar pela democracia, há que lutar para que ela seja uma democracia para todas as camadas e territórios, quem sabe como passagem para outras formas de organização que sequer estão no vocabulário disponível. E a luta não é só contra o ódio. Precisamos nos organizar também para reverter a apatia.

 

Daniele Avila Small  é coordenadora de pesquisa e curadoria do projeto O teatro e a democracia brasileira

Vídeos

Espetáculo na íntegra

Leitura crítica | Daniele Avila Small

Cadernos cênicos | Leadro Fazolla

ficha técnica

Livre Adaptação de “12 Angry Men” de Reginald Rose


Idealização, adaptação e direção geral: Juracy de Oliveira

Direção de arte e figurino: Luiza Fardin

Elenco: Enio Cavalcante, Gabrielly Arcas, Giovanna Araújo, José Henrique Ligabue, Leandro Vieira, Gilson de Barros, Mariana Queiroz, Maurício Lima, Múcia Teixeira, Nely Coelho, Ralph Duccini e Tatiana Henrique.

Realização: Pandêmica Coletivo Temporário de Criação

artes de divulgação

dramaturgias

12 PESSOAS COM RAIVA por Pandêmica Coletivo

12 ANGRY MEN por Reginald Rose

críticas

Clipping

Pandêmica Coletivo

Pandêmica Coletivo Temporário de Criação surgiu durante a pandemia da COVID-19 com a proposta de investigar e desenvolver processos e procedimentos artísticos em ambiente virtual, relacionando artistas de todo o Brasil para partilharem processos de criação e formação em teatro durante todo o período de isolamento social, promovendo a descentralização e o intercâmbio de pensamento e realizando um deslocamento geográfico, ético e artístico. O Coletivo foi indicado ao Prêmio Shell de Teatro 2023 na categoria especial “Energia Que Vem Da Gente”, que premia iniciativas com impacto social positivo.

Esta é a página de um espetáculo selecionado no âmbito do projeto O teatro e a democracia brasileira. As informações nela contidas são de responsabilidade de Juracy de Oliveira, excetuando-se o texto do curador do projeto, sendo esse de responsabilidade da Foco in Cena, proponente deste projeto. Caso encontre um erro ou divergência de dados, favor entrar em contato através do e-mail contato@focoincena.com.br

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