A CIDADE DOS RIOS INVISÍVEIS
Coletivo Estopô Balaio (SP)
Direção: Jhoao Junnior
Estreia: 2014
Foto: Ramilla Souza
O espetáculo
A Cidade dos Rios Invisíveis é um espetáculo de teatro itinerante criado pelo Coletivo Estopô Balaio que conduz o público em uma jornada teatral pela Linha 12-Safira da CPTM, de São Paulo. O percurso começa na Estação do Brás, onde os espectadores embarcam em um trem munidos de fones de ouvido e MP3, observando as paisagens urbanas através das janelas enquanto escutam narrativas sobre os rios invisíveis soterrados pela cidade e sobre as vidas dos viajantes cotidianos.
O espetáculo é a terceira parte da Trilogia das Águas, iniciada em 2012, que narra histórias de enchentes vividas pelos moradores do Jardim Romano. Criado por um coletivo composto majoritariamente por artistas migrantes nordestinos, o trabalho nasce de um processo de identificação com os moradores do bairro — também migrantes nordestinos — e se propõe a resgatar memórias alijadas da construção histórica da cidade de São Paulo.
Inspirado em Italo Calvino e dirigido por Jhoão Junnior, o trabalho trata o público não como consumidores, mas como viajantes convidados a estabelecer parentesco com o coletivo e com o bairro, transmutando a dor de estar na linha de frente da catástrofe climática em teatro vivo e comunitário.
A apresentação se encerra ao pôr do sol, às margens do rio, após uma experiência que combina realismo e poesia, transformando o deslocamento físico e simbólico em construção de memória coletiva.
A partir de 2023, com a estreia do espetáculo RESET BRASIL, dirigido por Ana Carolina Marinho e sob influência da pesquisa de Juão Nyn, integrante do coletivo e indígena Potyguara, o Estopô Balaio passa a chamar estes espetáculos itinerantes que acontecem na comunidade de “contrateatro”: uma abordagem anticolonial que reindigeniza a prática teatral, constrói novos relacionamentos com a cidade e pratica a vida coletiva na matriz urbana.
MIGRANTES FORA DO LUGAR, TEATROS FORA DO LUGAR
O Coletivo Estopô Balaio é um grupo teatral com 14 anos de trajetória, formado em sua maioria por artistas migrantes. E, mais ainda, por migrantes nordestinos. É necessário perceber esses territórios moventes que se constituem através das migrações no país. Essas pessoas que trilham caminhos, que seguem os rios, que constituem espaços provisórios de comunidade e imaginário fizeram e fazem a base da pirâmide social do Brasil. São esses migrantes que trabalham nos bares, nas construções das grandes cidades, nas portarias de prédios. São esses trabalhadores invisíveis que não estão nos livros de história desse país.
Os territórios não são apenas determinações geopolíticas impostas a populações, são imaginários, comunidades inoperantes, fraturadas, que se constituem em movência. A opção do espetáculo A cidade dos rios invisíveis de se utilizar, em sua cena inicial, do trem como espaço de memória revela esse estado de travessia presente nas constituições dos territórios.
A peça estreia em 2014 como parte da Trilogia das Águas, formada por Daqui a pouco o peixe pula (2012) e O que sobrou do rio (2013). Os três trabalhos trazem o debate sobre a presença constante das enchentes no Jardim Romano, a memória dos moradores dessa tragédia social e de suas vivências como migrantes. A cidade dos rios invisíveis é uma peça-percurso, forma-pensamento teatral fundamental para perceber as estruturas sociais de um país formado na periferia do capitalismo. Esta forma está presente em obras como O mambembe de Artur Azevedo, Macunaíma de Mario de Andrade e mais ainda nas formas populares dos espetáculos de rua do Nordeste com seus cortejos que invadem as cidades.
Esse pensamento-percurso está estruturado no desvelar das paisagens sociais. Dentro do trem, o espectador de A cidade dos rios invisíveis é colocado nessa paisagem sonora que vem dos fones de ouvido, aliada com a imagem da cidade que é vista pelas janelas. Então enxerga-se a imensa tragédia da desigualdade que forma as cidades divididas de um país formatado pela colonização de exploração, base da estrutura socioeconômica do Brasil.
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Quando os espectadores chegam no Jardim Romano, é possível acompanhar uma cartografia das memórias daquele território a partir de diversas intervenções artísticas entrelaçadas com as camadas das experiências cotidianas dos moradores do bairro a partir das enchentes que assolaram o bairro e das vivências migrantes. Assim entende-se essa cidade dividida entre marginais, rios e periferias:
Partindo da investigação destes três elementos centrais e imbuídos das experiências vividas principalmente com sua última criação, As cidades dos rios invisíveis, os elementos do grupo partem em busca de alargar o diálogo entre as margens em que estão situados (o Romano) e o centro da cidade de São Paulo, estabelecendo, entre ambos os locais, cruzamentos e fraturas. É desta necessidade de se falar de outras memórias, de outros corpos-migrantes que também habitam o “continente São Paulo” (Motta Silva; Silva; 2025, p.74)
O corpo-migrante se fricciona com o corpo-cidade sudestino e assim vai tentando estabelecer laços com esse outro lugar, seja através das novas famílias, que são os vizinhos, amigos, essa nova alteridade. Mesmo assim, estão sempre entre o ir e vir, como analisa o crítico Amilton de Azevedo:
A performatividade intrínseca ao trabalho é a do território que ela conta e habita: novas construções mudam a perspectiva de certas cenas, mudanças de moradores fazem com que outras caiam e distintas relações se estabelecem com essa vizinhança sempre aumentando. Passam carros e motos, cães dormem no estreito caminho entre os muros, alguém embriagado participa da ação, uma discussão acalorada em uma casa invade a encenação. É vida e é cena, diz a dramaturgia: a afirmação é constantemente ratificada pela realidade. O bairro é outro. O bairro é outro? Lá estão as crianças, os pequenos deuses que abençoam a vida e a arte ali insistente. Durante a última imagem da obra, um deles cruzou a cena. Diante de nossos olhos, o novo, ali, com um saco plástico amarrado a um barbante feito de pipa. Desejos de céu na beira de rios.
Essa imagem melancólica do migrante/passante, talvez essa criança que passa, nos remete às pegadas deixadas nas trilhas entre o aparecer e o desaparecer de tais jornadas. Essa operação movente no espetáculo A cidade dos rios invisíveis constitui uma possível forma-Brasil, lugar que expulsa pessoas, joga-as para as margens e pode até matá-las, como desejo de apagamento definitivo das histórias nordestinas.
Referências bibliográficas
Azevedo, Amilton. Da performatividade dos territórios de pequenos deuses (ele fazia do plástico amarrado num fio sua pipa desejosa de vento). Ruína Acesa, p. sp, 2022.
Mota Silva, Daniela; Silva, José Eduardo. 2025 Memória e transformação: o papel das narrativas na criação artística do Coletivo Estopô Balaio. Cuadernos de Música, Artes Visuales y Artes Escénicas 20 (1): 64-87.
Wellington Junior é pesquisador(a) e curador(a) do projeto O teatro e a democracia brasileira.
ficha técnica
Direção: Jhoao Junnior
Dramaturgia: Ana Carolina Marinho, Jhoao Junnior e Juão Nyn
Colaboração dramatúrgica: Elenco
Elenco: Adrielle Rezende, Ana Carolina Marinho, Anna Zêpa, Bruno Fuziwara, Carol Piñeiro, Clayton Dalim, David Costa, Keli Andrade, Juão Nyn, Júlio Lorosh, Paulo Barqueiro
Trilha sonora Trem-Ato: Marko Concá
Concepção de dispositivo sonoro: Carol Guimaris e Doutor Aeiuton
Poesias: Emerson Alcalde, Jacira Flores e Sérgio Schiapim
Canções: Diane Oliveira, Dunstin Farias, Matheus Farias, Juão Nyn, Marko Concá
Figurino: Jhoao Junnior
Artes Visuais: Eveline Sin, Daniel Minchoni, Coletivo Estopô Balaio, Clayton Dalim, Paula Mendes e moradores do Jardim Romano.
Dança de Rua: Bia Ferreira, Mell Reis, Luan Pinheiro, Jeanz Dance, Moisés Matos
Produção: Wemerson Nunes/ WN Produções
MCs: Dunstin e Matheus de Sá
Percussão: Josué Bob
Contrarregras: Clayton Dalim, David Costa, Lisa Ferreira
Participação especial: Junior, Seu Vital e Seu Antonio
Designer Gráfico: Anderson Leão
Sonoplasta: Jomo Faustino
Críticas
da performatividade dos territórios de pequenos deuses (ele fazia do plástico amarrado num fio sua pipa desejosa de vento)
por amilton de azevedo
17/05/2022
“Estamos diante de uma obra de arte total, talvez não na proposição tradicional do termo, mas em uma atualização à luz das possibilidades do fazer artístico na contemporaneidade, na metrópole, principalmente nas bordas da metrópole, em todas as suas potências éticas e estéticas.”
Acesse a íntegra da crítica aqui.
da vida ao rio: reescrevendo a história contra a corrente
por Daniele Avila Small
Revista Balaio - São Paulo, SP - Nº 1, Outubro 2014
“A cidade dos rios invisíveis é um espetáculo feito de teatralidades do teatro, de construção e convenções. O real aqui é contingência, ponto de partida. Não há espaço para o fetiche ou para o apelo do truque. O real do Jardim Romano não tem aura.”
Clique em cada parte da imagem para ler em tela cheia.
Trabalhos acadêmicos
clipping
Clipping 2014
Clipping 2019
Coletivo estopô balaio
O Coletivo Estopô Balaio – [de] criação, memória e narrativa está, desde 2011, ocupando o extremo da zona leste de São Paulo – no bairro Jardim Romano – e consolidou atuação no espaço público, propondo novas relações com a cidade e novas experiências de praticar a vida urbana. Seus trabalhos mergulham na história social dos territórios e nos depoimentos pessoais para refletir sobre migração, ancestralidades e pluralizar narrativas. O fazer teatral do Estopô Balaio se funda na prática da Arte em Comunidade e do Teatro Contracolonial, a exemplo dos espetáculos A cidade dos rios invisíveis (premiado na 32ª edição do Prêmio Shell 2020, na categoria Inovação), Reset Brasil (estreado em 2023 e que integrou a MITsp em 2025) e Reset América Latina que está em fase de pesquisa e pré-produção. Website: https://coletivoestopobalaio.com.br/
Coletivo Estopô Balaio (Canais)
Esta é a página de um espetáculo selecionado no âmbito do projeto O teatro e a democracia brasileira. As informações nela contidas são de responsabilidade de Ana Carolina Marinho Dantas, em nome do Coletivo Estopô Balaio, excetuando-se o texto do curador do projeto, sendo esse de responsabilidade da Foco in Cena, proponente deste projeto. Caso encontre um erro ou divergência de dados, favor entrar em contato através do e-mail contato@focoincena.com.br
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