Trilhas da Cena

Banner preto com texto em branco e vermelho "O Teatro e a Democracia Brasileira Parte Um" e logotipos da Funarte, do Ministério da Cultura e do Governo Federal do Brasil, além de informações sobre o programa e o financiamento.
Banner promovendo um projeto de teatro com logotipos da Funarte, do Ministério da Cultura e do Governo Federal do Brasil. O texto diz: "O Teatro e a Democracia Brasileira Parte Um" e menciona o Programa Funarte Retomada 2023 - Teatro.

A LENDA DE ANANSE: UM HERÓI COM ROSTO AFRICANO

Teatro Negro e Atitude (MG)

Direção: Evandro Nunes e Marcus Carvalho

Estreia: 2007

Atualizada em 07/07/2025

Foto: Guto Muniz

Sinopse

Baseado na mitologia Ashanti, (grupo étnico-linguístico localizado em Gana – País do oeste africano) o espetáculo narra as aventuras vividas por um velho de nome Kwaku Ananse para trazer do céu as histórias guardadas por Nyame – O deus do céu, num baú encantado que só lhe será entregue após serem cumpridas três importantes tarefas, capturar: Ozebo – O leopardo de dentes terríveis, Nmboro – O maribondo que ferroa como fogo e Moatha – A fada que nunca foi vista, missão que só se fará possível graças à grande sabedoria desse herói – dádiva que só o tempo traz.

o espetáculo

Logotipo com uma forma de flor preta contendo letras coloridas que soletram A Lenda de, seguida por ANANSE em texto grande e colorido e a frase Um herói com rosto africano abaixo em preto.

Preocupado com a enorme carência de espetáculos teatrais voltados às infâncias que possuíssem poética e estética que propiciassem identificação para com a cultura afro-brasileira, grupo Teatro Negro e Atitude estreou em 2007 o espetáculo A Lenda de Ananse: um herói com rosto africano. Seu surgimento foi – e ainda é – uma inovação estética, resultado da pesquisa que o grupo desenvolve, nas manifestações da cultura popular brasileira de matriz africana e seu emprego no fazer teatral.

Em 2023, o espetáculo passou por uma remontagem. Nela o espetáculo passa a ser um espetáculo de Palhaços-Griot, mistura elementos da cultura africana e afro-brasileira ao teatro mambembe de palhaços. No que se refere à forma, a encenação requer explicitamente um Teatro Aberto. Ou seja, seus “personagens” estão num espaço em que não há barreiras entre a contracena e a relação com a plateia. Não se trata de mera interatividade, mas da construção coletiva de atuantes/palhaçes e plateia para a realização do espetáculo, numa vivência mediada por convenções estabelecidas em comum acordo entre as partes. Numa grande brincadeira onde todos se divertem. A representação e a imaginação são pontos básicos da aliança que se estabelece entre o atuante/palhaçe e o espectador, sem a qual o espetáculo não acontece. A presença da plateia nunca é um acessório acidental, mas sim um componente da energia e da ação cênica da peça.

Uma teia de encantamentos: infâncias, estórias e saberes

Em A Lenda de Ananse: um herói com rosto africano, o Teatro Negro e Atitude – TNA – realiza uma sensível incursão pelos verdejantes caminhos do teatro infanto-juvenil. O espetáculo, partindo de uma narrativa tradicional africana, aborda, com delicadeza e humor, o papel da sabedoria e da sagacidade na resolução dos obstáculos da existência, além de celebrar o significativo papel da oralidade nas gnoses e culturas negras. Ananse, um velho fazedor de teias, sobe até os céus a fim de coletar, no baú divino de Nyame, histórias para compartilhar com o seu povo, restaurando, assim, a beleza e o frescor da vida comunal. Para tanto, o engenhoso protagonista, meio humanoide, meio aracnídeo, precisa superar três desafios a fim de lograr seu objetivo. A singela aventura nos revela uma personagem perspicaz e matreira, capaz de ludibriar todas as adversidades não por intermédio da força bruta, mas pela fineza do raciocínio, da ironia e da ludicidade. Nesta obra, o longevo grupo mineiro volta suas atenções especialmente para as infâncias pretas, reconhecendo a importância política e estética de se estabelecer diálogos com este público diuturnamente alvo de um racismo perverso, letal e desestruturador de suas subjetividades, desde a mais tenra idade. Assim sendo, o projeto poético desse trabalho marcha na contramão desta realidade vincada pelo desencantamento, suscitando a criação de outros mundos e imaginários povoados pelas riquezas literárias de África. 

 

O título da montagem faz referência direta ao livro de Clyde W. Ford, O herói com rosto africano: mitos da África, um abrangente estudo das complexas dimensões psicológicas, culturais, sociais e epistemológicas destes vastos repertórios narrativos, que também se espraiaram para as américas no curso da diáspora. De acordo com o pesquisador, os animais repontam frequentemente nos mitos africanos, plasmando símbolos e metáforas de saberes ancestrais, princípios filosóficos e ensinamentos sagrados. Complementa ele: “a aranha figura em vários mitos africanos, e sua teia, assim como a Árvore do Mundo, costuma ser o elo entre a terra e o paraíso, o meio de comunicação pelo qual a humanidade sobe à divindade e a divindade desce à humanidade”. A concepção dramatúrgica do espetáculo, portanto, brota dessas fundações míticas, reatualizando a postura investigativa que permeia as atividades do Teatro Negro e Atitude, isto é, um compromisso e um desejo de calcar sua arte nas tradições culturais africanas e afro-brasileiras. Ademais, objetos cotidianos, como pneus, garfos e borrifadores são artisticamente ressignificados em uma montagem que prima pela singeleza das brincadeiras soltas e fantasiosas.

Ananse é uma proeminente figura mitológica e religiosa, presente em contos, provérbios e ensinamentos dos axântis, um sub-grupo étnico integrante do povo akan, localizado na porção ocidental do continente africano, sobretudo no centro-sul de Gana. Na língua Twi, ananse significa aranha. Este ser, dotado de força espiritual, se projeta como um “trickster” brincalhão e debochado, sábio e enganador. Em sua fluida constituição estão superpostas ambiguidades e antíteses que se esquivam de binarismos paralisantes. Na esteira do tráfico negreiro e dos trânsitos afro-atlânticos, Ananse, especialmente no território jamaicano, assume a forma de um símbolo heroico de luta contra a escravidão, as classes dominantes e seus desmandos. O TNA convida as infâncias a se inspirarem na inteligência, no despistamento, na resiliência e na esperteza desta virtuosa criatura, que não recua diante das ameaças e perigos de um mundo violento. 

 

Quando perspectivado historicamente, A lenda de Ananse, espetáculo concebido há quase vinte anos, contribuiu, direta e indiretamente, para o fortalecimento dos teatros negros para as crianças e adolescentes, sobretudo em um contexto histórico no qual estas discussões não estavam tão estabelecidas como hoje. No teatro brasileiro contemporâneo, tais criações estão a construir um campo cada vez mais sólido e multifacetado. A atriz e pesquisadora Lucélia Sérgio (2021, p.43), estudiosa destas dramaturgias, assinala: “O Teatro Negro para infância e juventude tem se preocupado em ampliar o repertório cultural e tem buscado não reduzir a juventude a uma homogeneidade, abordando especificidades culturais e desigualdades sociais, além de lutar contra o racismo. Explorando possibilidades articulatórias entre a realidade imaginada e a realidade vivenciada, na busca por fortalecer um pensamento estético/político afro-referenciado, no qual se possa acariciar a sensibilidade para forjar nossa humanidade no mundo”. 

 

Um sem-número de poéticas negras para as infâncias se faz notar na atualidade, como O Pequeno Príncipe Preto, de Rodrigo França (RJ); Sarauzinho da Calu, de Cássia Vale (BA); Quando eu morrer vou contar tudo a Deus, de Maria Shu (SP); Abena e Matias e a estrada infinita do tempo, encenados pela Cia. Bando (MG); Os Coloridos, de Cidinha da Silva, entre muitos outros trabalhos. Em conjunto tais produções estão a nos dizer que não haverá plena democracia no Brasil enquanto todas as infâncias não forem devidamente respeitadas e acolhidas em suas necessidades e singularidades físicas e simbólicas. Em 2024, o Odara – Instituto da Mulher Negra divulgou uma importante pesquisa intitulada “Quem vai contar os corpos?”: Dossiê sobre as mortes de crianças negras como consequência da atuação da Polícia Militar da Bahia. Neste documento, o instituto reflete sobre a letalidade que atinge as infâncias negras no estado baiano e em outras partes do Brasil, entrecruzando informações socioeconômicas, raciais e territoriais. Os alarmantes dados evidenciam um gravíssimo panorama de extermínio da juventude negra sobretudo provocado por abusos cometidos em operações policiais. Só em 2022, 76% das mortes causadas por agentes do Estado vitimaram jovens de 12 a 29 anos. O racismo enfrentado por crianças e jovens pretos insiste em minar suas amplas possibilidades de futuro.

 

Diante desse descalabro, os teatros negros para as infâncias e juventudes estimulam os sonhos, os voos imaginativos, os laços de solidariedade e as delicadezas, delineando contextos estéticos desafiadores e acolhedores para distintas idades e identidades. Criação artística e pensamento pedagógico, portanto, se imbricam fortemente em uma cena desejosa de propiciar reflexões para uma efetiva reeducação para as relações étnico-raciais. A lenda de Ananse, assim sendo, se insere nesta luta ao evocar cenicamente valores civilizatórios africanos e afro-brasileiros como um caminho estético e político para um profundo reencantamento do mundo. 

 

O Teatro Negro e Atitude, em mais de três décadas de trabalho, é seguramente um dos grandes construtores das cenas negras em Minas Gerais, ainda hoje abrindo caminhos para as novas gerações de artistas e grupos. O pesquisador, ator e diretor Evandro Nunes (2021, p. 125-126), importante figura na história do grupo, sintetiza em seu livro O Teatro Negro e Atitude no Tempo – O Tempo no Teatro Negro e Atitude, os principais anseios do TNA: “Estética calcada nos matizes da cultura negra diaspórica, ou seja, capoeira, congado, candomblé, cultura popular, para além dos corpos negros em cena.

 

Busca romper com a visão apenas de um teatro possível a partir dos cânones eurocêntricos, fazendo com que a negrura do grupo e dos vários corpos que o constitui ganhe luz, trazendo à tona uma Estética da Atitude e uma Poética da Negrura”. Os incontáveis cursos, fóruns, oficinas, espetáculos, ações formativas e políticas materializam uma trajetória combativa e doce, aguerrida e ética. 

 

Guilherme Diniz é pesquisador e curador do projeto O teatro e a democracia brasileira.

¹ Um painel mais vasto das teatralidades e dramaturgias negras para as infâncias pode ser apreciado no artigo “A cena dos muriquinhos: para pensarmos os caminhos dos teatros negros para as infâncias e juventudes”, de Guilherme Diniz. Link para leitura: https://www.horizontedacena.com/a-cena-dos-muriquinhos-para-pensarmos-os-caminhos-dos-teatros-negros-para-as-infancias-e-juventudes/

Vídeos

ficha técnica

Texto: Conto popular africano de domínio público.

Adaptação: Evandro Nunes e Marcus Carvalho.

 

1ª Montagem
Direção: Evandro Nunes
Direção musical: Marcus Carvalho
Preparação corporal: Zildo Flores
Elenco: Evandro Nunes (até 2009), Clécio Lima (de 2009 até 2019) e Marcus Carvalho

Produção: Teatro Negro e Atitude
Figurino: Poliana do Espírito Santo
Cenário: Teatro Negro e Atitude
Trilha sonora original: Marcus Carvalho

2ª Montagem
Direção: Marcus Carvalho

Assistente de direção: Evandro Nunes
Elenco: Digo Correa e Maria Moreira
Produção: Teatro Negro e Atitude
Figurino: Helaine Freitas
Preparação de palhaçaria: Rogerio Gomes
Cenário: Clécio Lima

Artes

Matérias, notas e críticas

Depoimentos

Teatro Negro e Atitude

Criado em 1993 o Teatro Negro e Atitude é um grupo dedicado à pesquisa de um teatro que beba e se alimente nas manifestações da cultura popular brasileira de matriz africana para a criação de uma linguagem que difunda e valorize a diversidade cultural do país; investigando textualidades, corporeidades e musicalidades existentes na cultura afro-brasileira e seu emprego no fazer teatral, desde a estética de seus trabalhos até o treinamento do ator, num processo que é entendido como “descolonização do corpo”, tendo como base a Estética da Atitude e Poética da Negrura. Seu surgimento foi – ainda é – uma inovação estética.

Esta é a página de um espetáculo selecionado no âmbito do projeto O teatro e a democracia brasileira. As informações nela contidas são de responsabilidade de Marcus Carvalho, excetuando-se o texto do curador do projeto, sendo esse de responsabilidade da Foco in Cena, proponente deste projeto. Caso encontre um erro ou divergência de dados, favor entrar em contato através do e-mail contato@focoincena.com.br

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