ARAME FARPADO
Coletivo Arame Farpado (RJ)
Direção: Phellipe Azevedo
Estreia: 2017
Foto: Iury de Carvalho Lobo e Wallace Lino
Sinopse
[Play: Calcinha Preta] De um lado temos 4 atores sentados na mesma cadeira de praia na laje, piscina brabissima, churrasqueira bolada, cerveja gelada, um baile funk com uma MC. Do outro lado temos a universidade. No meio temos uma cerca de arame farpado. O espetáculo é baseado em fatos reais, mas em caso de processo foi tudo inventado mesmo. Mete dança pivete e pega a visão: Brota! E aquela pergunta mec: Quando a democratização do acesso à educação será radicalmente estabelecida? Se ficar bolado com alguma coisa, reclama na boca. Sejam bem vindes ao Arame Farpado.
O espetáculo (projeto)
De mudança para a universidade: celebração e crítica na democratização do acesso à educação superior no Brasil
por Daniele Avila Small
No Brasil, a ampliação do acesso à educação superior com a política de cotas, o PROUNI, o FIES e outros programas que viabiliaram a entrada de alunos periféricos nas universidades, também tornou mais evidentes as estruturas coloniais intrínsecas às instituições de ensino. Arame farpado, peça de formatura de Phellipe Azevedo realizada em 2017 no curso de Direção Teatral da UNIRIO, se dedica especificamente a esse problema. A peça retoma a discussão do livro Por que uns e não outros? – Caminhada de jovens pobres para a universidade, uma versão da tese de doutorado em Educação de Jaílson de Souza, defendida na PUC-Rio em 1999, que oferece diversos relatos sobre a dificuldade que alunos criados em favelas encontram para se inserir no ambiente universitário. A peça entrelaça relatos do livro com depoimentos pessoais dos atores e das atrizes, dando concretude aos enfrentamentos com exemplos de situações vividas narradas do ponto de vista da equipe de criação, o coletivo Arame Farpado, formado pelo diretor e pelo elenco – Lidiane Oliveira, Sol Targino, Peterson Oliveira e João Pedro Zabeti.
Logo ao entrar no teatro, o público já encontra um clima quente de festa. O espetáculo põe em cena um posicionamento crítico inegociável ao mesmo tempo em que se dá como uma celebração. A não separação entre comemorar uma conquista e reivindicar que o espaço conquistado se transforme para melhor é sinal de saúde dos afetos: direitos constitucionais devem ser amplamente – e não apenas parcialmente – desfrutados. Em nome do “NÓS X ELES”, de uma luta contra a direita e a extrema direita, profissionais de esquerda em posições favorecidas tendem a postergar eternamente o enfrentamento das desigualdades internas entre um suposto “nós”, como se uma investida contra-colonial desde dentro pudesse ser tomada como equivalente aos ataques fascistas que vêm de fora. Não pode. A crítica não é um discurso de ódio; a crítica pode até ser – e na verdade muitas vezes é – um gesto comprometido de amor e cuidado, como penso que é o caso de Arame farpado.
A peça denuncia e ilustra tanto o racismo naturalizado nas relações interpessoais quanto os epistemicídios naturalizados nos conteúdos programáticos, bem como os desentendimentos diante da necessidade de reconhecimento da validade dos saberes trazidos pelos alunos em suas experiências vividas em outros circuitos de sentido, tramados em outras noções de cidade, outras cosmologias, ancestralidades e epistemes. Pode-se pensar que tais saberes têm relação direta com as artes do corpo, a oralidade, a experiência estética e a produção de saberes considerados não científicos. Ainda assim, mesmo no âmbito das artes, as distâncias entre os repertórios dos alunos e os conteúdos validados no currículo universitário não são menos abissais. Assim como nas relações sociais, nas quais o homem branco não se racializa, o conhecimento branco se toma como marco regulatório, como neutro. A centralidade do teatro europeu é um elemento definidor da grande maioria dos cursos de teatro no país – esse não é um problema específico de um ou outro curso. No entanto, não é possível esperar por uma mudança sistêmica, que venha de cima para baixo, organizada e asséptica. É preciso trocar o pneu com o carro andando mesmo, com todos os tropeços e equívocos que certamente vão aparecer no caminho.
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A universidade é um lugar de formação. O processo de aprendizado acontece no trânsito de afetos e não simplesmente em uma relação burocrática de aquisição de informações e técnicas. É importante que o vínculo entre os alunos e o lugar proporcione um ambiente de estímulo criativo. Nesse sentido, considero pertinente que a pergunta motriz da elaboração da peça tenha sido “como transformar a UNIRIO em nosso lar?”. A jornada entre uma experiência hostil de universidade e a transformação desse território em um lar é um empreendimento ambicioso, que diz respeito à ética dos artistas/estudantes com o seu projeto de autoformação. E é uma evidência inquestionável do amor que aqueles alunes estavam dispostos a ter por aquela instituição: querer fazer daquele espaço algo que se possa chamar de lar não é pouca coisa. Além disso, a pergunta parece equivalente à condição mesma da luta contra a colonialidade: como habitar a diferença colonial, lembrando que o lócus fraturado não é um abismo, mas um solo? A universidade é um lugar a ser habitado na sua contradição de ser um ambiente que proporciona contato com ferramentas de formação e emancipação profissional, mas que também dá continuidade a dispositivos opressores. Não há paraíso perdido para o qual retornar.
A resposta à pergunta do projeto se dá na ação da peça: uma mudança dos atores para a universidade. A ideia foi materializada na cenografia de Carla Costa, que hoje é professora do curso de cenografia da UNIRIO. Todo cenário é composto de caixas de papelão. O gesto simbólico, por parte do elenco, de levar as suas coisas pessoais para a UNIRIO é uma maneira de se aparelhar com suas próprias narrativas nesse lugar de felicidade e enfrentamento. Desencaixotar as memórias na universidade é um modo de traçar o seu riscado nesse território, de invadir o ideário dominante com narrativas periféricas: borrar as fronteiras da geo-política do conhecimento, renegociando imaginários lá dentro.
O humor também não fica de fora. Há cenas de temperamento expansivo, de gargalhadas e aplausos em cena aberta, e há cenas de humor discreto, sorriso constante. A verve gingada da carpintaria dramatúrgica aparece numa cena em que as caixas se transmutam em cubos para a construção de uma estrutura cenográfica surpreendente, operada pela virtuosidade da atuação de Sol Targino, quando ela ergue, ao mesmo tempo em que escala, uma espécie de torre. Ao longo dessa cena, intitulada Ninja, a atriz narra um dia da sua vida de jovem adulta periférica universitária em comparação irônica com as questões políticas e as personagens femininas do drama burguês.
O problema a que Arame farpado se endereça, portanto, não é só o estar dentro ou fora da universidade, mas a concretude dos muros internos, das cercas vazadas, que deixam ver o “dentro”, mas também deixam às claras os limites de quem pode ou não pode entrar. O título da peça evidencia a demarcação de um território por meio de um corte no espaço que se dá como uma violência. O arame farpado não tem uma violência ativa, ele não ataca. Mas, ao estabelecer os limites (necessários, afinal) para dar contorno a um território, ele fere quem arrisca uma ultrapassagem. Com essa metáfora, a universidade é colocada como espacialidade constituída por um contorno hostil, como uma instituição de ensino público percebida como uma propriedade privada. Essa é uma questão que está muito longe de estar resolvida, é um problema tão antigo quanto o processo de constituição do país.
Vale lembrar que o processo de criação da peça se deu num momento marcado pelas ocupações de escolas públicas por estudantes secundaristas, movimento que teve seu ápice em 2016, ano de estreia de uma outra peça: Quando quebra queima, da ColetivA Ocupação, de São Paulo, formada por estudantes, que vivenciavam na pele aquele marco histórico do qual eram agentes e protagonistas, e artistas. Embora se trate de espetáculos distintos, as duas peças marcaram a história do teatro do eixo Rio-São Paulo naqueles anos, apresentando protestos artísticos endereçados a problemas sistêmicos de escolas e universidades no Brasil, frisando a presença das artes da cena nas lutas sociais e na formação política de uma juventude urbana que foi testemunha e resistência diante de imensos ataques à democracia brasileira.
Referência bibliográfica:
AZEVEDO, Phellipe. “Arame farpado: deu caô na Federal” Questão de Crítica Vol. X nº 69, 2018. Disponível em: http://www.questaodecritica.com.br/2018/03/arame-farpado/
Daniele Avila Small é pesquisadora e curadora do projeto O teatro e a democracia brasileira.
vídeo
Apresentação do espetáculo no Itaú Cultural (SP)
ficha técnica e artística
Idealização e direção: Phellipe Azevedo
Elenco: Lidiane Oliveira, Sol Targino, Peterson Oliveira, João Pedro Zabeti.
Organização dramaturgica: Phellipe Azevedo
Dramaturgia: Lidiane Oliveira, Sol Targino, Peterson Oliveira, João Pedro Zabeti.
Orientação dramatúrgica: Rosyane Trotta
Orientação teórica: Marina Henriques
Pesquisa e criação: Lidiane Oliveira, Sol Targino, Peterson Oliveira, João Pedro Zabeti e Phellipe Azevedo.
Colaboração na pesquisa: Carolina Caju e Wallace Lino.
Direção de movimento: Juliana Longuinho
Cenografia e figurino: Carla Costa
Iluminação: Isabella Castro
Videografismo e foto: Iury de Carvalho Lobo
Direção de fotografia: Wallace Lino e Iury de Carvalho Lobo
Direção musical: Rodrigo Maré Souza
Designer: Matheus Affonso
Produção: Wellington Oliveira e Phellipe Azevedo
Vídeo final: Drau Animation
Voz off: Vó Florisa
Carta final: de Dona Joana para filha, Conceição Evaristo
Dramaturgia
sobre o processo
“Por um bom tempo eu fui Phellipe Azevedo de Alvarenga e parte de apenas um lado da minha família. Parte da família da minha mãe e hoje eu sou muito parte dela. Como minha mãe eu sempre fui da rua. Existia nela o desejo de estar com o outro, uma troca constante com a rua. Os vizinhos não eram desconhecidos, eles eram parte formadora dela e da minha educação. O coletivo foi presente na minha construção, fui criado na rua e sou dela. A rua se estabeleceu como a grande inteligência e sagacidade de transformação do meu ser e do meu entorno. Existia na minha mãe uma inteligência de se estabelecer com o outro. E esse diálogo com o outro, forma e transforma. Aprendi com ela a construção desta sabedoria: o conhecimento que vem da rua.
Caju. Rua C. Almoço. Desenho. Pique lata. Polícia e ladrão. Descalço. Corrida de tampinha. Circuito. Mapeamento de todas as ruas. Esconderijo. Festa na cozinha da vó. Garrafão. Carniça. Salada mista. Pique-Esconde. Jogo de tabuleiro. Nintendinho. Bicicleta. Patins. Inventar. Criar. Sujar. Juntar. Corpo. Coletivo. 19h. Jantar. Calçar. Chinelo. Dormir. Acordar. Escola. Odiar.
Sou Phellipe Azevedo de Alvarenga/Souza. Cria da favela do Caju, especificamente da Manilha.
Chegar à faculdade pública era uma determinação. Em algum momento eu tinha certeza que pertenceria àquele espaço. Só não sabia que demoraria. E que o processo para chegar naquele lugar me dominaria com o sentimento de “emburrecimento”
, apesar de toda sagacidade que acreditava ter.”
Continua aqui.
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Coletivo Arame Farpado
O Coletivo Arame Farpado é formado por artistas que são crias da periferia e da favela. Tem como investigação a fricção entre humor, tecnologia, território, realidade e ficção através do audiovisual e do teatro. Com seu primeiro espetáculo de mesmo nome, ganhou o 8º Prêmio Questão de Crítica. Na sequência, estreou o “Projeto Êxodo”, que consiste na criação de 3 obras artísticas que conversam entre si, mas que também são obras com suas trajetórias individuais. Da pesquisa nasceram o espetáculo O Clássico Êxodo, a intervenção urbana Êxodo da Lidi e o filme Expresso Parador. Refletir a cidade enquanto cultura, linguagem e estética a partir da ótica periférica é um dos seus objetivos principais. O grupo já participou de alguns dos principais eventos culturais do país, como o Cena Brasil Internacional (CCBB – RJ), Circuito Sesc de Teatro (SESC – SC), 15ª edição do Festival Palco Giratório (SESC – POA), Festival a_ponte (Itaú Cultural – SP) e Brasil Cena Aberta (SP).
Coletivo Arame Farpado
Esta é a página de um espetáculo selecionado no âmbito do projeto O teatro e a democracia brasileira. As informações nela contidas são de responsabilidade de Phellipe Azevedo, excetuando-se o texto do curador do projeto, sendo esse de responsabilidade da Foco in Cena, proponente deste projeto. Caso encontre um erro ou divergência de dados, favor entrar em contato através do e-mail contato@focoincena.com.br
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