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Trilhas da Cena

ARQUEOLOGIAS DO FUTURO

Museu dos Meninos - Maurício Lima e Dadado de Freitas (RJ)

Direção: Dadado de Freitas e Mauricio Lima

Estreia: 2023

Atualizada em 21/04/2025

Sinopse

Arqueologias do futuro é uma performance-depoimento a partir de memórias – vividas e inventadas – da vida do performer Mauricio Lima no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, acompanhado de mais 30 vozes, se perguntando: o que o corpo fala? Quais corpos são vistos e ouvidos? Quem tem direito de narrar suas próprias histórias? Uma navalha, o Menino Amarelinho, as rotas de fuga, o Homem-bola e o corpo-museu são os “artefatos” recolhidos nessa arqueologia, formando um mosaico imagético-sonoro, político-poético, sampleando ficção e documento, apontando as potências de vida e o futuro, não o que há de vir, mas o que já é, de corpos vivos e em movimento.

Negras luzes esculpem sonhos e tempos

Arqueologias do futuro desestabiliza as imagens de um mundo em que a desumanização e a violência racial, já naturalizadas, estruturam hierarquias, sistemas de exclusão e desigualdades socioeconômicas. Mais do que isso, o trabalho questiona os enquadramentos ideológicos e históricos que sustentam nosso olhar. O que vemos quando olhamos para um corpo negro? De fato, o vemos? O que nossos olhos iluminam e o que obscurecem? Quais sentidos nossos campos de visão produzem diante dessa realidade sanguinolenta e cínica? Logo, as políticas do olhar conformam nossas representações da realidade, modos de organização social e experiências individuais. As experimentações de Maurício Lima recordam-nos que todo olhar traz em si uma relação com o mundo, relação esta na qual inexiste neutralidade absoluta. E se, de súbito, reimaginássemos o mundo também a partir dos sonhos, doçuras e revoltas da negrura? Quais outros universos e possibilidades poderiam ser inventadas ao desnaturalizarmos os condicionamentos raciais que, repetidamente, tolhem e anuviam nossas sensibilidades? 

 

O espetáculo, dirigido por Maurício Lima e Dadado de Freitas, elabora desenhos de cena que sustentam um tenso jogo entre a ocultação e a revelação do corpo do ator. Claridade e obscuridade, manejadas por intrincados recortes luminosos, vão modelando, em diversos momentos, silhuetas, fragmentos e contornos de uma densa e movente fisicalidade. Arqueologias do futuro analisa a contradição que, historicamente, envolve a pessoa negra: de um lado emparedada por artifícios que a apagam, a invisibilizam, atomizando ao infinito, sua presença e sua humanidade; do outro, sujeita a discursos e práticas sociais que a tornam excessiva, monstruosa, grotesca, objeto incontornável de miradas e perseguições. Invisibilidade e hipervisibilidade, alimentadas pelo racismo, tentam delimitar as possibilidades da existência negra. A performance suspende a familiaridade e o automatismo de certas imagens e figurações produzidas por uma realidade brutalmente racializada, dando-nos paisagens de sentidos plurais, outros centros de referência para observarmos a vida social. O que [não] vemos quando olhamos para um corpo negro?

O Complexo do Alemão, bairro carioca que reúne diversas comunidades, é a janela através da qual o mundo nos é reapresentado. Este território, contudo, não é delineado a partir da precariedade ou do martírio. De fato, Arqueologias do futuro entende as favelas, as margens e as bordas como lugares de onde também germinam afetos, tecnologias e projetos de país contrários à morte e ao desencantamento hegemônico. Enfim, um laboratório de imagens, narrativas, reminiscências e temporalidades atravessadas, mas não definidas, pela dor. A noção de futuro, fabulado aqui, recusa o ideário neoliberal, branco e meritocrático de progresso ou ascensão individual. A pesquisa desenha o futuro como um exercício de imaginação radical capaz de instigar alternativas éticas e políticas, modos de sociabilidade e afetividade não dominados por uma gramática racista e colonial. 

 

Conforme o Atlas da Violência de 2024, uma pessoa negra foi morta a cada 12 minutos entre 2012 e 2022. As chances de homicídio para pretos e pardos é 2,8 vezes maior do que para as populações não-negras. Disputar e redimensionar noções de tempo (e de futuro), neste país assolado por genocídios e apagamentos, é, seguramente, uma das tarefas políticas mais importantes de toda a nossa história. Arqueologias do futuro não apenas se lança nesse desafio, como o faz a partir do corpo negro, este alvo preferencial da coerção racial. Os desejos e as cicatrizes, as movências e as polissemias da negrura convertem-se no ponto de partida performativo e epistemológico por meio do qual Maurício Lima enfrenta os sistemas de discriminação e o imaginário dominante. Em larga medida, o trabalho reafirma o direito inalienável de habitarmos, com dignidade e plenitude, nossos corpos, principalmente para aqueles e aquelas acossados por estruturas políticas de aniquilamento. 

 

Maurício Lima se transforma cenicamente em um museu vivo, incorporando objetos (físicos e simbólicos), memórias, discursos e desejos pessoais e coletivos, vozes de tantos jovens negros periféricos que, apesar do Brasil, apostam no viver. O performer passeia por cinco artefatos: a navalha, o menino amarelinho, as rotas de fuga, o homem bola e o menino museu. Cada objeto, ao se contrapor a tantas estereotipias raciais, dispara imagens poéticas, deslizantes, abertas, exprimindo, portanto, subjetividades negras não só plurissignificativas, mas em constante processo de construção e reconstrução. Nesta toada, Arqueologias do futuro não abre mão da delicadeza e da fantasia para abordar as vidas faveladas, mostrando-nos, inclusive, masculinidades repletas também de sensibilidade e amor. 

 

O aspecto, porém, mais destacado na constituição dramatúrgica e espetacular da performance é a sua densa expressão corporal. As memórias, reivindicações, pesares e contra-narrativas são corporificados, tornam-se gesto, coreografia, cinesia. Maurício Lima diz: […] de todas as vozes que ao contrário de se calar, dançaram. Que na alegria, dançaram; que na dor, dançaram; que na fé, e na falta dela, dançaram”. Em diversos momentos, o artista dança, explora repetições e intensificações, alterna andamentos e tonicidades, dando a ver um corpo sinuoso e desejante. Salta aos olhos a tênue ironia impressa na sua coreografia, que, entre claros e escuros, despista o olhar branco dominador, cria tempos não-lineares e espaços para sua própria liberdade. Danças que, andando no fio da navalha, condensam em si a festa e a guerra, a celebração e a contestação. Na gestualidade, na poesia do movimento, nos impulsos e pulsos, a corporeidade denuncia as lacunas do presente e anuncia o porvir. Um negro corpo não apenas marcado por opressões, mas sobretudo tracejado como uma instância do prazer e da beleza, dos enigmas e das complexidades. Ao dançar, Maurício, e tantos outros seres encarnados nele, sonham com um outro mundo possível. Imaginar futuros para si e para o coletivo é, a um só tempo, uma dádiva e um direito básico em qualquer sociedade que deseja ser concretamente democrática. 

 

Arqueologias do futuro integra o projeto Museu dos Meninos, um amplo programa multidisciplinar, criado em 2019 por Maurício Lima, com o fito de tecer memórias, recontar a história e fabular outras realidades, reafirmando a inegociável humanidade das gentes pretas dos morros, quebradas e asfaltos. As ações, neste âmbito, são estruturadas por uma profunda intermedialidade, numa cuidadosa justaposição de princípios e poéticas advindos de distintas linguagens artísticas, tais como o audiovisual, a música, as artes da cena e as artes visuais. Nas mais diversas mídias, contudo, o intuito permanece o mesmo: rejeitar as perspectivas que tornam a população negra mero objeto das fantasias e discursos alheios, projetando-a como construtora e sujeito de sua própria história.

 

Guilherme Diniz é pesquisador(a) e curador(a) do projeto O teatro e a democracia brasileira.

O espetáculo

A peça-performance, idealizada pelo ator e performer Mauricio Lima – também responsável pela direção e dramaturgia em colaboração com Dadado de Freitas – é um desdobramento do projeto Museu dos Meninos – um museu virtual que investiga procedimentos de preservação, inscrição e invenção de memórias a partir de uma perspectiva favelada e periférica. A pesquisa acontece no Complexo do Alemão, um dos maiores conjuntos de favelas do Rio de Janeiro. 

 

Para Arqueologias do futuro, Lima apresenta uma arqueologia afetiva, explorando cinco ‘artefatos’ que compreendem objetos, vídeos, personagens e histórias encontrados na fase de pesquisa para o Museu dos Meninos. A dramaturgia parte do “museu” como uma metáfora, mas também se relaciona com os elementos museológicos de forma concreta a partir das ideias de acervo e coleção. A performance mergulha nas memórias, tanto reais quanto inventadas, do performer no Complexo do Alemão, seu território de origem, acompanhado de mais 30 vozes dos jovens negros que formam a coleção permanente do Museu dos Meninos. Nesse contexto, a narrativa instiga reflexões sobre o que o corpo fala, quais corpos são genuinamente percebidos e ouvidos, e quem detém o direito de narrar suas próprias histórias.

 

A encenação, que transita entre teatro, performance, dança e artes visuais, propõe configurações poéticas para corpos e territórios sistematicamente oprimidos. “Trazemos para o palco uma subversão do imaginário social estigmatizante ligado a esses meninos e ao Complexo do Alemão. O que colocamos em cena é a vida e a delicadeza que transbordam do território e dos corpos que ali vivem, em um exercício poético de criação de outras perspectivas de futuro para esse território e essa juventude”, destaca Mauricio.

 

As provocações visuais e sonoras desempenham um papel crucial em Arqueologias do futuro. “A peça materializa, em cena, a tensão entre o visível e o invisível, radicalizando a relação entre luz, som e movimento em uma experiência sensorial. Uma manipulação imagética para que ecoe uma pergunta fundamental: ‘Você consegue me ver?”, completa Dadado. A trilha sonora original é composta por Novíssimo Edgar e Beà Ayòóla. A direção de arte é de Evee Ávila.

 

Arqueologias do futuro foi desenvolvida ao longo de três anos, atravessando e sendo atravessada pela pandemia de COVID-19. A montagem, inicialmente prevista para estrear em 2020 no International Community Arts Festival (ICAF), em Rotterdam, na Holanda, foi cancelada devido à disseminação do vírus. “Foi um período tenso para todos nós. Fomos vendo uma certa ideia de mundo ruir. Não tinha como isso não invadir a performance”, salienta Dadado. Durante o tempo de isolamento, a pesquisa transformou-se em uma ação site-specific no espaço virtual, que incluíram uma performance virtual, com grande circulação, que chegou a participar até de festivais de cinema, como a Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte (CineBH) e também uma série de encontros com artistas, pensadores e ativistas negros e negras de diferentes partes do mundo, como Djamila Ribeiro no Brasil e, internacionalmente, Joacine Katar Moreira, pensadora luso-guineense. Após três anos de pesquisa em outros formatos, os artistas estrearam a performance no Festival de Curitiba em 2023.

 

Arqueologias do futuro foi contemplado no Edital de Chamada Emergencial de apoio ao Teatro “Evoé! RJ”, do Governo Federal, Ministério da Cultura, Governo do Estado do Rio de Janeiro e da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro (SECEC- RJ) através dos recursos da Lei Paulo Gustavo.

Performance: Mauricio Lima
Direção: Dadado de Freitas e Mauricio Lima
Dramaturgia Sampleada: Dadado de Freitas e Mauricio Lima
Direção de Arte: Evee Ávila
Direção de Produção: Nely Coelho / Ginja Filmes
Trilha Sonora: Novíssimo Edgar e Beá Ayòóla
Sonoplastia, Mixagem e Master “Artefato 3”: Vinicius Guelfi
Videoartista: Caio Casagrande
Video Mapping: Fagner Lourenço
Desenho de Luz: Dadado de Freitas
Operação de videomapping: Carolina Godinho
Operação de luz: Debrá
Técnica de som: Raquel Brandi
Montagem: Guiga Ensa, Bruno Oliveira
Colaboração Artística: Tainah Longras e Romulo Galvão
 Imagens “Homem-Bola”: Diogo Nascimento
Mídias Sociais: Rodrigo Menezes
Formação de público: Marcelo Lemmer / RL Acessibilidade
Acessibilidade: RL Acessibilidade
Assessoria de Imprensa: Lyvia Rodrigues / Aquela Que Divulga

Mauricio Lima

Ator, bailarino e performer formado pela Escola de Teatro Martins Pena e pelo curso de Teoria da Dança, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua junto ao grupo Teatro de Extremos e o Coletivo Líquida Ação, em paralelo à sua pesquisa artística autônoma. Em seu trabalho autoral tensiona as questões ético-estéticas relacionadas às negritudes contemporâneas e periféricas, memória, fabulação e performance.

Foto: Diogo Nascimento
Foto: Diogo Nascimento

Dadado de Freitas

Diretor, dramaturgo e ator. Mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ, pesquisa performance, política, a cena e os corpos dissidentes. Dirige o Teatro de Extremos e experimenta linguagens híbridas entre o teatro e outros gêneros. Como artista da cena tem vasta experiência nacional e internacional, acumula diversas indicações a prêmios e acredita na transgressão pela palavra, no corpo como dissidência e exercita a “bixice” e o desbunde como formas militantes de existência.

Foto: Elisa Mendes
Foto: Elisa Mendes

o museu dos meninos

O Museu dos Meninos é uma plataforma multilinguagem idealizada pelo ator e performer Mauricio Lima, cria do Complexo do Alemão, em colaboração com diversos artistas. Com origem em 2019, foi comissionado pela Prince Claus Fund no programa NEXT GENERATION e tem como propósito investigar, mapear, coletar e preservar memórias negras a partir de diferentes perspectivas faveladas, por meio de ações nos campos das artes cênicas, visuais e audiovisuais.

 

Reconhecido pelo seu papel inovador, o projeto foi indicado ao 34º Prêmio Shell de Teatro, na categoria especial “Energia que vem da Gente”, pelo conjunto de suas ações. Atuando como uma obra-museu, o Museu dos Meninos reúne em seu acervo principal uma série de 30 vídeos-depoimentos de jovens negros, entre 15 e 29 anos, moradores das favelas do Complexo do Alemão e de seus arredores, no Rio de Janeiro. A seleção desses participantes foi orientada tanto pelo desejo de abarcar a diversidade de experiências de masculinidade quanto pelo enfrentamento das alarmantes estatísticas de mortalidade entre a juventude negra.

 

A plataforma propõe um exercício contínuo e coletivo de criação de memórias e de fabulação de futuros para o povo preto e favelado, utilizando diferentes suportes e linguagens artísticas, e conectando ações de mapeamento às práticas de inscrição e valorização das trajetórias e vivências desses jovens.

Críticas

A apresentação de Arqueologias do Futuro, a que assistimos na primeira semana do Festival de Curitiba nos últimos dias de março de 2023, é uma das entradas possíveis para um projeto mais amplo, o Museu dos Meninos, “uma obra-museu composta por uma série de ações nos campos do audiovisual, das artes cênicas e visuais, com a premissa de mapear, preservar e criar memórias, como exercício contínuo e coletivo de futuridades impossíveis para o povo preto e favelado”, como consta no espaço online em que esse museu virtual pode ser visitado. Realizado por Mauricio Lima, artista da dança e do teatro do Rio de Janeiro, com direção e dramaturgia sampleada em parceria com Fabiano (Dadado) de Freitas, o projeto se coloca como uma reação aos dados divulgados no Mapa da Violência no Brasil em 2016. Uma reação propositiva, que subverte o imaginário impresso nas imagens de jovens rapazes negros, cujas vidas são o alvo mais comum da truculência policial na cidade. O espetáculo subverte também a expectativa de quem vai ver uma obra que parte – pelo menos parcialmente – da premissa da violência. O que se vê em cena é um derramamento de delicadeza. (,,,)

 

Daniele Avila Small

 

Clique sobre as imagens para ler a íntegra das críticas.

Crítica de Amilton de Azevedo
Crítica de Daniel Shenker
Crítica de Marcio Tito

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