

Bom dia, Eternidade
O Bonde (SP)
Dramaturgia: Jhonny Salaberg
Direção: Luiz Fernando Marques Lubi
Estreia: 2024
Atualizada em 07/05/2025
Sinopse
Quatro irmãos idosos que sofreram um despejo quando crianças recebem a restituição do terreno após quase 60 anos e se encontram para decidir o que fazer. O tempo se embaralha em um jogo de cortinas e um mosaico de histórias reais e ficcionais é costurado no quintal da antiga casa acompanhado de um bom café e de um velho samba. Em cena, uma banda de quatro músicos, cada qual com mais de sessenta anos, em um jogo friccional com as narrativas dos atores/atriz d`O Bonde. Um espetáculo que descortina a realidade do passado olhando para o presente.
O espetáculo
Bom dia, Eternidade é um espetáculo teatral do grupo O Bonde que apresenta a história de quatro irmãos idosos reunidos para decidir o que fazer com um terreno restituído após quase 60 anos de um despejo ocorrido na infância. A dramaturgia da peça se constrói através de um mosaico de histórias reais e ficcionais, onde o tempo não segue uma linearidade convencional, mas se embaralha em diferentes camadas narrativas.
A encenação utiliza cortinas como elemento visual central, que funcionam como dispositivo para representar as diferentes temporalidades da história. Este recurso cênico permite a transição entre o presente e o passado, criando um jogo visual que materializa o conceito temporal proposto pela dramaturgia. O espaço cênico recria o quintal da antiga casa dos irmãos, local onde as memórias são evocadas e compartilhadas.
Um aspecto distintivo da montagem é a presença de uma banda composta por quatro músicos idosos, todos com mais de sessenta anos. Estes músicos não apenas executam a trilha sonora ao vivo, mas estabelecem o que os textos de referência descrevem como “um jogo friccional com as narrativas dos atores/atriz”. O samba, caracterizado como “velho” nos materiais, atua como elemento sonoro que conecta temporalidades e histórias apresentadas em cena.
A proposta dramatúrgica do espetáculo articula elementos documentais e ficcionais, entrelaçando histórias reais com elementos imaginados. Esta estrutura narrativa é apresentada como um “mosaico” que se desenvolve no quintal da casa, acompanhado por café e música. O texto aborda a restituição do terreno como ponto de partida para explorar memórias e relações familiares.
O espetáculo trabalha a temática do envelhecimento dos corpos negros, utilizando tanto o texto quanto a presença física dos artistas em cena para construir significados. A idade avançada dos músicos e atores não é apenas um dado biográfico, mas um elemento integrante da proposta cênica e dramatúrgica, estabelecendo conexões diretas com as questões abordadas pela narrativa.
A dramaturgia de Bom dia, Eternidade propõe uma reflexão sobre o tempo e a memória, “descortinando a realidade do passado olhando para o presente”, conforme descrito nos materiais de referência. Esta estrutura temporal não-linear é sustentada pelos elementos cênicos, especialmente pelo jogo de cortinas e pela presença da música ao vivo, criando uma experiência teatral que entrelaça diferentes momentos da vida dos personagens.
ODE AO TEMPO: POR UMA ÉTICA SENSÍVEL DO BEM VIVER
Em Bom dia, Eternidade, a harmonia de uma modesta família negra é drasticamente transtornada quando uma arbitrária ordem de despejo, expedida pelo regime ditatorial brasileiro, deitou abaixo a singela casinha que os abrigava, colocando, de súbito, uma mãe e seus quatro filhos ao relento. Sessenta anos depois, os irmãos, já idosos, se reúnem no mesmo terreno onde antes existia a saudosa habitação. O reencontro descerra uma série de rememorações, utopias, desapontamentos e insurgências de sujeitos atropelados por violências e interdições, mas também banhados por desejos e amores. O quarteto reconstrói, nos arabescos da memória, a antiga residência, o retrato da mãe (tristemente embranquecido pelo fotógrafo), as brincadeiras infantis, os aromas e sabores, entre outros traços de um cotidiano repleto de delicadezas.
A encenação arquiteta um intrincado jogo em que variadas dimensões temporais, memoriais e oníricas são justapostas, ultrapassando uma noção de tempo unilinear e progressivo. O conceito de tempo espiralar, cunhado pela professora, ensaísta e poeta Leda Maria Martins, é uma importante referência para a concepção do espetáculo. Em cena, quatro artistas jovens (os integrantes do Bonde) e quatro artistas idosos se espelham em uma aventura poética em que real e ficcional; passado, presente e futuro; histórias coletivas e particulares se embaralham, se atravessam e se enovelam constantemente. Ao encarar as imagens, densidades e texturas do tempo, Bom dia, Eternidade reflete especialmente sobre os dilemas e os impasses imiscuídos no envelhecimento da população negra.
O espetáculo, portanto, escancara uma verdade indiscutível: envelhecer dignamente não é um direito vivenciado por todos os cidadãos do país. O Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e a associação Itaú Viver Mais conduziram uma significativa pesquisa, intitulada Envelhecimento e desigualdades raciais, cujos dados revelam-nos gigantescas assimetrias entre idosos brancos e negros no Brasil. Estes últimos encontram maiores desvantagens no acesso à saúde (pública e privada) e à aposentadoria, estão mais expostos à violência e à insegurança financeira, além de vivenciarem mais agudamente a exclusão digital. Soma-se a esta conjuntura desoladora o fato de que a mortalidade violenta continua ferrenhamente a incidir muito mais sobre pretos e pardos. De acordo com o Atlas da Violência de 2024, pessoas negras são três vezes mais vítimas de homicídios do que pessoas brancas. Isso significa dizer que uma vastíssima parcela da população brasileira está estruturalmente impedida de construir futuros com altivez e beleza. “O Brasil é negro, mas o envelhecimento é branco” sintetiza dolorosamente o pesquisador Roudom Ferreira Moura.
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Logo, Bom dia, Eternidade se insurge contra um sem-número de estatísticas lúgubres, delineando, pela poesia cênica, imaginários pulsantes, coloridos e luminosos para a gente negra de todas as idades. O espetáculo também se ancora nos princípios éticos e filosóficos de tantas cosmovisões africanas e afro-diaspóricas segundo as quais o envelhecimento não se reduz à inutilidade, ao esvaziamento ou à finitude absoluta; pelo contrário, nas culturas negras os mais velhos são confluências de temporalidades, bolsões de saberes, concentrações de vitalidade e portais para o porvir.
Por tais razões, o Bonde também nos convoca a refletir sobre os sentidos políticos, epistemológicos e culturais do tempo, sobretudo em uma sociedade regida por diversas estruturas de poder racistas e neoliberais que, de uma forma ou de outra, controlam, normatizam e ceifam nossas possibilidades de aproveitar livre e prazerosamente os ritmos suaves da existência. Ao festejar a longevidade de homens e mulheres negros, a despeito dos aparatos genocidas em vigor, a montagem pensa o tempo como celebração, dádiva e fruição. O elenco idoso é composto por veteranos artistas advindos do universo musical, motivo pelo qual as melodias, as sonoridades e os cantos constituem canais privilegiados para a reconstrução da memória.
Na trama, Mercedes, uma das irmãs, distribui para os demais uma carta. Em verdade trata-se de um documento federal que restitui, para a família, a posse do terreno outrora usurpado pelo governo repressor. Nesse sentido, o símbolo da casa adquire significações para além do espaço físico. É abrigo das memórias e dos afetos; refúgio do passado familiar; emblema da luta por justiça contra a amnésia sistematicamente disseminada, fato este sobremaneira importante em uma nação, como o Brasil, cujas políticas de esquecimento tornaram (e ainda tornam) a ditadura civil-militar um acontecimento fugidio, longínquo, como se não tivesse deixado um terrível arsenal de violações que até hoje atravessam a vida nacional. A moradia, portanto, reaviva não apenas as recordações domésticas, mas a inequívoca responsabilidade do estado ditatorial brasileiro na destruição de liberdades e sonhos. Do mesmo modo, as personagens, com o auxílio da plateia, ressignificam a fotografia da matriarca, enegrecendo a sua face, que fora embranquecida. Reconstituir a negrura da mãe é também um ato de recontar a história, forjar uma contra-narrativa capaz de enfrentar os mecanismos de apagamento da presença negra na formação do país. Violências deste tipo são reincidentes entre nós. Basta recordarmos como, por exemplo, as imagens de Machado de Assis e de Maria Firmino dos Reis, duas prodigiosas vozes da literatura brasileira, foram brutalmente clareadas, conformando processos simbólicos que consagram a brancura como nexo, origem e destino da história.
No âmbito das teatralidades negras contemporâneas, é lícito mencionar o sofisticado espetáculo-instalação Bença (2010), do Bando de Teatro Olodum (BA), no qual toda a criação reverencia a ancestralidade, a passagem do tempo e o papel fundamental dos mais velhos nas tradições negras religiosas. Mais recentemente, a robusta montagem O fim é uma outra coisa (2024), dirigida por Grace Passô e por Gabriel Cândido, investiga também, entre outros tópicos, as temporalidades, o envelhecimento, a memória cultural negra e suas diversas tecnologias. Zora Santos, atriz e idealizadora do projeto, verseja: “Ser longeva é minha vingança / Vão ter que me aturar / Na esquina do futuro / No centro da encruzilhada / Antes que eu vire bebê novamente / Seguirei brincando / Neste corpo de mulher preta adulta.”
Bom dia, Eternidade encerra a Trilogia da Morte do Bonde: uma tríade de espetáculos (Quando eu morrer vou contar tudo a Deus e Desfazenda são os dois primeiros) que discute a necropolítica, os ecos socioeconômicos da escravidão e as estratégias de resistência antirracista. A narratividade, a força do verbo como estruturador cênico-dramatúrgico, bem como o mergulho nas ressonâncias rítmicas, fonéticas e imaginativas da palavra são os principais elos poéticos desse tríptico teatral.
Guilherme Diniz é pesquisador e curador do projeto O teatro e a democracia brasileira.
Programa do espetáculo
Vídeos
Bom dia, Eternidade!
Ficha técnica e artística
Idealização: O Bonde
Elenco: Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteves
Músicos em cena: Cacau Batera (bateria e voz), Luiz Alfredo Xavier (violão, contrabaixo e voz), Maria Inês (voz) e Roberto Mendes Barbosa (piano e voz)
Dramaturgia: Jhonny Salaberg
Direção: Luiz Fernando Marques Lubi
Diretora assistente: Gabi Costa
Direção musical: Fernando Alabê
Videografia e operação: Gabriela Miranda
Desenho de luz: Matheus Brant
Cenografia e Figurino: Luiz Fernando Marques Lubi
Acompanhamento em dramaturgia: Aiê Antônio
Música original: “Preta nina” – Fernando Alabê, Luiz Alfredo Xavier e Roberto Mendes Barbosa
Técnico de som: Hugo Bispo
Técnica de Videografia: Clara Caramez
Captação de vídeo: Fernando Solidade
Costura cenário: Edivaldo Zanotti
Cenotecnia e Contrarregragem: Helen Lucinda e Tati Serafim
Fotos: Júlio Cesar Almeida
Assessoria de imprensa: Canal Aberto – Márcia Marques
Social Mídia (criação de conteúdo): Erica Ribeiro
Produção: Jack Santos – Corpo Rastreado
SOBRE OS MÚSICOS:
Cacau Batera é um grande instrumentista e intérprete dos mais exímios. Desfilou sua arte do ritmo apoiando artistas como Jerry Adriani, Tim Maia, Johnny Alf e Jamelão. Seu dom expande a arte do cantar ao modo dos “crooners” de antigamente e sua voz tem a excelência e a elegância dos grandes cantores da música popular brasileira.
Luiz Alfredo Xavier é parceiro de Zé Ketti e Jamelão, assim como de tantos outros aos quais emprestou seu conhecimento teórico musical, escrevendo as partituras das letras que lhe chegavam, e assim ajustando a harmonização delas. Revisor da Editora Ricordi, responsável pelo aprendizado musical de muitas gerações ao longo de mais de sessenta anos de música como cantor, compositor, violonista e contrabaixista, sendo, deste modo, integrante da primeira banda que acompanhava os Originais do Samba, quando o grupo ainda se chamava Os Sete Crioulos da Batucada.
Maria Inês é uma cantora por resistência, pois foi impedida pela família de exercer seu sonho de cantar, como fazia em programas de calouros aos 15 anos. Abandonando a carreira artística e se dedicando à arte e ser cabeleireira por cinquenta anos, ao se aposentar, ingressou no Coral da USP, onde ficou por dez anos, todavia se ausentando deste por mais dez anos, retornando aos palcos agora para a peça.
Roberto Mendes Barbosa é maestro, regente de coral, cantor e compositor. Formado pelo Mozarteum, se dedica a corais e liras pela cidade de São Paulo, bem como atua como músico de cena para teatro.
críticas
[…] o diretor apostou todas as fichas na possibilidade de um teatro, por assim dizer, sincero. A espontaneidade – esta faca de dois gumes – é mútua e alimenta em sintonia fina a relação palco-plateia. O que vem da cena nos chega fresco, contundente e, em algumas passagens, bastante comovente.
Kil Abreu, para Cena Aberta
A escolha de situar o despejo durante o regime militar não foi uma decisão irrefletida. Nesse período, o poder público destruiu bairros inteiros, como aconteceu com algumas favelas do Rio de Janeiro.
Quando tentavam resistir, os moradores sofriam represálias. Em 1968, por exemplo, líderes da Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (Fafeg) foram presos e ameaçados após se oporem à remoção de comunidades cariocas.
Matheus Rocha, para a Folha de São Paulo
Eternamente posto ao centro da grande equação dos povos, o Brasil, no plano do Bonde, aparece dissecado por toda sorte de acidente cultural e convívio étnico forçado. E é justamente este senso de realidade o que faz da cena apresentada uma legítima visita ao Brasil real, muito acima de outras aproximações cujas grandes qualidades aparecem pela força de uma fabulação qualquer.
Marcio Tito, para Deus Ateu
Quando os quatro atores jovens iniciam o espetáculo, a plateia já é convidada a mergulhar num estado de euforia e felicidade típica de um grand finale que parece evocar uma história de pessoas bem-sucedidas. Mas descobre-se que não é nada disso. E que a história dessa montagem ainda está para ser reconstruída, revisada e revirada do avesso.
Eduardo Nunomura, para Farofafá
o bonde
Fundado em 2017 por artistas negros e periféricos egressos da Escola Livre de Teatro de Santo André, o coletivo paulistano O Bonde consolidou-se como um dos grupos mais inovadores da cena teatral brasileira. Sua pesquisa artística concentra-se no enfrentamento às heranças coloniais e escravocratas, utilizando narrativas afrodiaspóricas e técnicas que mesclam spoken word, música e ritual. A Trilogia da Morte (2019-2024) — composta por Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus, Desfazenda – Me enterrem fora desse lugar e Bom Dia, Eternidade — sintetiza essa proposta, explorando as “quase mortes” simbólicas impostas a corpos negros em diferentes fases da vida. Cada obra da trilogia emprega linguagens distintas, como teatro infantil, cinema expandido e interações com músicos idosos, mantendo como eixo a oralidade como resistência.
Em sua trajetória, o coletivo recebeu o Prêmio APCA de Melhor Espetáculo Virtual pelo espetáculo Desfazenda, em sua versão peça-filme, realizada durante o período da pandemia. Esse mesmo espetáculo foi indicado ao Prêmio Shell de Melhor Dramaturgia, pelo juri da cidade de São Paulo em 2022, já em sua versão presencial. As apresentações gratuitas e transmissões online do grupo democratizaram o acesso à cultura, alcançando mais de 50 mil espectadores.
Ao substituir estruturas narrativas tradicionais por processos colaborativos e horizontais, O Bonde influenciou coletivos teatrais a repensarem dramaturgias eurocêntricas. Sua abordagem — que combina ancestralidade, denúncia social e experimentação técnica — redefine o conceito de teatro político, posicionando-se como referência na construção de uma arte antirracista e transformadora.
Esta é a página de um espetáculo selecionado no âmbito do projeto O teatro e a democracia brasileira. As informações nela contidas são de responsabilidade do grupo de tetro O Bonde na pessoa de Jhonny Salaberg, excetuando-se o texto do curador do projeto, sendo esse de responsabilidade da Foco in Cena, proponente deste projeto. Caso encontre um erro ou divergência de dados, favor entrar em contato através do e-mail contato@focoincena.com.br

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