

A INVENÇÃO DO NORDESTE
Grupo Teatro Carmin (RN)
Direção: Quitéria Kelly
Estreia: 2017
Atualizada em 10 de março de 2025
Foto: Carlos Gomes
Sinopse
Um diretor é contratado por uma grande produtora para realizar a missão de selecionar um ator nordestino que possa interpretar com maestria um personagem nordestino. Depois de vários testes e entrevistas, dois atores vão para a final e o diretor tem sete semanas para deixá-los prontos para o último teste. Durante as 7 semanas de preparação, os atores refletem sobre sua identidade, cultura, história pessoal e descobrem que ser e viver um personagem nordestino não é tarefa simples.
O espetáculo

Vencedora do Prêmio Shell de Melhor Dramaturgia e do Cesgranrio de Melhor Espetáculo, entre outros, “A Invenção do Nordeste” aborda o surgimento e a trajetória histórica da região nordeste, propondo a desconstrução da imagem estereotipada do nordestino. Motivada por reações xenófobas, manifestadas na internet durante as eleições de 2014, a atriz Quitéria Kelly encontra, na obra de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, um ponto de partida para refletir as divisões sociais brasileiras. Durval é historiador e autor do livro: “A Invenção do Nordeste e Outras Artes”.
Durante a pesquisa, o Carmin mergulhou nos mecanismos estéticos, históricos e culturais que contribuíram para a formação de uma visão reducionista do Nordeste brasileiro. A partir daí, Pablo Capistrano e Henrique Fontes escreveram uma autoficção onde um diretor é contratado por uma grande produtora de fora do Nordeste para preparar dois atores norte-rio-grandenses na disputa pelo papel de um personagem nordestino. Durante a preparação, a identidade nordestina entra em cheque. Afinal, existiria apenas uma identidade nordestina?
Desvios de um teatro do nordeste
O Grupo Carmin surge em 2007 com o espetáculo Pobres de marré, uma pesquisa sobre mulheres em situação de rua nos bairros da Ribeira e Cidade Alta, em Natal. Depois, encenam O auto do menino Deus (2009) e Olha a água (2010). Em 2011, se voltam para o universo infantil e encenam Castelo de lençóis. Em 2013, acontece a estreia de Jacy, espetáculo que dá início à investigação cênica do grupo sobre o teatro documental. Criada a partir de uma frasqueira encontrada na rua, a peça reflete sobre o envelhecimento enquanto conta e especula sobre a história de uma mulher de 90 anos – a dona da frasqueira que havia sido descartada na rua. Em 2015, estreia um espetáculo baseado na obra de Marguerite Duras, denominado Por que Paris?.
Em 2017, com 10 anos de existência, o grupo estreia A invenção do Nordeste, espetáculo criado em diálogo com o livro A invenção do Nordeste e outras histórias, de historiador Durval Muniz de Albuquerque Junior. A peça surge como uma proposição da diretora Quitéria Kelly, a partir do momento sociopolítico que tinha se estruturado após as eleições presidenciais de 2014: vários atos xenofóbicos nas redes sociais atacando pessoas nordestinas. No podcast da revista Questão de Crítica, realizado no final de 2015, a encenadora potiguar traz as questões que mais a interessaram no início da pesquisa, com o espetáculo ainda em fase de pré-produção.A leitura do livro de Durval Muniz trouxe contradiscursos sobre as estruturas imaginárias de uma região, de um nordeste “vendido’:
Comecei a ver trechos da literatura brasileira que eu tinha lido na minha adolescência, talvez de forma distraída, e eu, sendo nordestina, não percebia que aquelas coisas não eram verdades, que era uma ficção, e estavam ditando uma cultura, uma tradição. […] Você começa a acreditar naquilo e a defender aquilo.(KELLY, FONTES, SMALL, 2016)
O espetáculo se desenvolve a partir de três eixos centrais: a arqueologia das representações de uma região, os campos de disputa de trabalhos para artistas nordestinos – principalmente para atores no audiovisual – e a luta política contra os coronéis do Nordeste e do Brasil.
Esses eixos emanam feixes cênicos-dramatúrgicos que se entrelaçam pela voz/pensamento de um diretor de elenco, personagem do ator e dramaturgo Henrique Fontes, que, a partir de uma certa ironia (como um repentista pop da geração Mangue Beat), vai trazendo fatos, dados e textos históricos que fundamentaram as “raízes” de um Nordeste idealizado de Gilberto Freyre a Ariano Suassuna. Repassando os diversos imaginários coloniais das representações políticas e das artes do Nordeste, esse personagem nos apresenta as formas corporais dos nordestinos na ideia de um ser forte, o sotaque como uma construção exótica de prosódia, até a construção das masculidades dos heróis nordestinos.
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Um momento significativo da encenação de Quitéria Kelly é quando os atores refazem uma cena do filme Deus e o diabo na terra do Sol de Glauber Rocha. Vemos então uma rasura de arquivos, que se duplicam como um olhar desviante, desvelado. Enquanto, no filme de Glauber Rocha, vemos os estereótipos do Nordeste nos corpos, nas formas de falar, na construção de uma seca como vitimização política de uma região; na peça, vemos atores que tentam imitar aquele padrão construído como modelo de arte e política de uma paisagem “regional”. Mesmo assim há furos nos dois discursos. Mesmo quando Glauber cria essa imagem da fome nordestina, ele revela, no movimento de câmera e nos olhares do elenco, a fragilidade inerente aos seres infames (pessoas comuns) dessa região. Na reperformance do filme feita pelos atores da peça, vemos corpos urbanos, distantes do imaginário de um sertão comercializável da cultura de massa. Cada gesto e olhar desvelado em contraposição ao filme de Glauber é uma parada para pensar como os imaginários velados de uma região são o seu abismo, seu câncer, e a sufocam.
Essa cena nos faz pensar como as fronteiras e os territórios regionais são criações históricas, máscaras cenográficas das representações da cultura. A perspectiva histórica é muito bem arquitetada nas cenas em que o espetáculo nos concede a percepção de vários aspectos de uma realidade social – aspectos econômicos, políticos, jurídicos, culturais. Assim, percebermos as relações espaciais como relações políticas. Mais importante, percebemos os discursos sobre o espaço como discursos da política dos espaços, creditando à política e à história o que nos é apresentado como natural. Fica evidente como nossas fronteiras espaciais do Nordeste são esses corpos-territórios controlados em suas representações.
A Invenção do Nordeste dialoga com os procedimentos crítico-artísticos de diversos criadores do Nordeste que dilaceraram essa imagem alienante de controle sobre procedimentos estético-sociais, tais como o cinema-teatro de Jomard Muniz de Britto, a escrita fílmica de Kleber Mendonça Filho e as encenações do Grupo de Teatro Vivencial. O que vemos na escrita cênica deste espetáculo é um ensaio sobre os modelos de controle do imaginário da cultura e sobre os “coronéis” da cultura, que muito se beneficiaram dessa poética da regionalidade, colada como uma máscara de um território no rosto dos artistas nordestinos.
Referências:
KELLY, Quitéria; FONTES, Henrique; SMALL, Daniele Avila. “Grupo Carmin” Questão de crítica. Podcast em 21 de janeiro de 2016. Disponível em: http://www.questaodecritica.com.br/podcast/podcast-grupo-carmin.
Wellington Júnior é pesquisador(a) e curador(a) do projeto O teatro e a democracia brasileira.
vídeos
A invenção do nordeste | Teaser do espetáculo
A invenção do nordeste | Mostra São Palco – Coimbra (Portugal)
ficha técnica e artística
ELENCO INICIAL: Henrique Fontes, Robson Medeiros e Mateus Cardoso
ELENCO ATUAL: Henrique Fontes, Rafa Guedes e José Neto Barbosa
DRAMATURGIA: Henrique Fontes e Pablo Capistrano (inspirada livremente na obra “A Invenção do Nordeste e outras artes” do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior)
DIREÇÃO: Quitéria Kelly
PRODUÇÃO GERAL: Quitéria Kelly
PRODUÇÃO EXECUTIVA: Mariana Hardi
DESENHO DE LUZ: Pedro Fiuza
DRAMATURGIA AUDIOVISUAL: Pedro Fiuza
DIREÇÃO DE ARTE E CENOGRAFIA: Mathieu Duvignaud
FIGURINO: Quitéria Kelly
MÚSICA ORIGINAL: Gabriel Souto; Toni Gregório
ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO: Pedro Fiuza
CONFECÇÃO DE FIGURINO: Kátia Dantas
EDIÇÃO DE VÍDEO E DESIGN DE ANIMAÇÃO: Juliano Barreto
OPERAÇÃO DE LUZ: Pedro Fiuza (estreia)
OPERAÇÃO DE SOM: Elenco
OPERAÇÃO DE CÂMERA E VÍDEO: Elenco
DIREÇÃO DE PALCO: Daniel Torres (2018-2019)
CONTRARREGRAGEM: Elenco
CENOTECNIA: Irapuan Júnior
TÉCNICA DE MONTAGEM: Anderson Galdino e Grupo Carmin
COREOGRAFIA E PREPARAÇÃO CORPORAL: Ana Cláudia Viana
PREPARAÇÃO VOCAL: Gilmar Bedaque
CONSULTORIA DE PESQUISA: Durval Muniz de Albuquerque Júnior
DESIGN GRÁFICO: Teo Viana (2017); Vítor Bezerra (2018)
XILOGRAVURA: Erick Lima
SLAM CORDEL: Daniel Minchoni
LOCUÇÃO: Daniele Avila Small (“diretora carioca”) e Giovana Soar (“diretora paulistana”)
Críticas

“A inspiradora direção de Quitéria Kelly vale-se de uma infinidade de recursos audiovisuais e analógicos, modernos e arcaicos — filmes e documentos, maquetes e miniaturas — e propõe um jogo cênico autocrítico que maneja diferentes registros de atuação — tragédia, comédia, teatro épico, pós-dramático, dança contemporânea — para transmitir também sensorialmente o argumento central do Grupo Carmin neste trabalho: difícil não é “ser ou não ser”, difícil não é contrapor a um “nós” abstrato um “eles” fictício, criando essa dicotomia insustentável: “ou nós ou eles”.”
Patrick Pessoa | Jornal O Globo | 10.08.2018
Leia na íntegra aqui.

“A excepcional dramaturgia, ao mesmo tempo muito acessível mas crítica, convida ao diálogo e golpeia a questão na boca do estômago. Ninguém pensa em paulistas, cariocas ou mineiros como se tivessem uma identidade cultural única, por conta de viverem na mesma região, o Sudeste.”
Paulo Camargo | Escotilha | 10.04.2023
Leia na íntegra aqui.

Grupo Teatro Carmin
Surgido em 2007, o grupo pesquisa temas urbanos, memória e história e os retrata de forma cômica em dramaturgias originais. No seu repertório, peças consagradas como Jacy (2013) e A invenção do nordeste (2017) além de Pobres de Marré (2007) e Por que Paris? (2015), que somam mais de 500 apresentações para mais de 30.000 pessoas em 23 estados brasileiros e na França. Circulou pelo SESC Palco Giratório, BR Distribuidora e festivais como Mirada (SP), Cena Contemporânea (DF), Flip (RJ), Festival d’Aurillac (França), MICBR (SP), Fringe (PR), FIT BH (MG), FIT Rio Preto (SP), FIAC Bahia (BA). Fez temporadas no Teatro Carlos Gomes (RJ), SESC Pinheiros (SP), SESC Copacabana (RJ), SESI-FIRJAN(RJ). Ganhou prêmios como Melhor Dramaturgia (prêmio Shell 2019); Prêmio Questão de Crítica(2019); Melhor Espetáculo (Cesgranrio 2019), Melhor Peça, Direção e Texto (Premio do Humor 2019). Atualmente trabalha na montagem da peça Gente de Classe, com estreia prevista para 2025.
Esta é a página de um espetáculo selecionado no âmbito do projeto O teatro e a democracia brasileira. As informações nela contidas são de responsabilidade de Quitéria Kelly, excetuando-se o texto do curador do projeto, sendo esse de responsabilidade da Foco in Cena, proponente deste projeto. Caso encontre um erro ou divergência de dados, favor entrar em contato através do e-mail contato@focoincena.com.br

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