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Trilhas da Cena

Eu tenho uma história que se parece com a minha

Concepção: Tetembua Dandara (SP)

Estreia: 2022

Atualizada em 20/06/2025

Foto: Tetembua Dandara

Sinopse

A obra atravessa diferentes gerações da família da artista Tetembua Dandara. Ativada pelo encontro da performer e sua avó, Dirce Poli, com intervenções de sua mãe, Neuza Poli, e de sua irmã, Mafoane Odara. A instalação convida o público a adentrar um espaço que remete a uma sala de vó, a um quintal ou mesmo a uma festa dos anos 1990. Ali, narrativas são reconstruídas pelas vozes, sabores e olhares dos presentes, que podem transitar pelo espaço e pelas histórias por quanto tempo desejarem. O trabalho teve como ponto de partida o livro fotográfico homônimo idealizado pela performer, que traz espaços em branco (e preto), estabelecendo um diálogo de imagens e poucas palavras.

Uma tira de negativos de filme preto e branco captura três fotos: um bebê recém-nascido deitado, uma mulher inclinada sobre o bebê e o bebê bocejando ou chorando em um berço. Foto: Tetembua Dandara
Uma tira de negativos de filme preto e branco captura três fotos: um bebê recém-nascido deitado, uma mulher inclinada sobre o bebê e o bebê bocejando ou chorando em um berço. Foto: Tetembua Dandara
Uma tira de negativos de filme preto e branco captura três fotos: um bebê recém-nascido deitado, uma mulher inclinada sobre o bebê e o bebê bocejando ou chorando em um berço. Foto: Tetembua Dandara

Degustar histórias, alimentar futuros

Eu tenho uma história que se parece com a minha é um sensível convite à escuta. Ensinamentos e afetividades se apresentam sob a forma de histórias que visam, sobretudo, cultivar e maximizar nossa valiosa capacidade de imaginar outros destinos saudáveis e dignos para a coletividade. Para isso é necessário depurar a escuta do mundo, das dores e delícias, suspender o imediatismo e captar os sentidos do presente. O espetáculo nos coloca diante de uma altiva família negra, liderada por gerações de mulheres, cujas trajetórias, da maternidade à militância, do lar às estradas longínquas, inspiram-nos a protagonizar, com firmeza e doçura, as nossas próprias vidas. “A história que vocês esperam não será contada”, adverte-nos a artista Tetembua Dandara, indicando, desde já, a busca por alinhavar imagens e paisagens para além daquilo que a opressão racial sub-repticiamente emoldura. Desenhar imaginários infinitos, eis o que se pretende construir.   

 

O trabalho se apoia em dois grandes vetores culturais e poéticos: de um lado a dimensão da festa, a celebração do encontro; do outro a primazia da oralidade, ou seja, a palavra sagrada como convocação, recriação de tempos, evocação de memórias. Tetembua e sua família recebem-nos para uma festa em casa. O espaço preenchido por músicas, ruídos e conversas; da cozinha emanam aromas e conhecimentos; a piscina de bolinhas está pronta para ser energizada pelas crianças; as luzes piscantes matizam, em múltiplos tons, o ambiente. As tradicionais e festivas reuniões familiares, com seus almoços e aniversários, são artisticamente reconstruídas a fim de promover um intenso convívio cênico, abolindo divisões entre palco e plateia. Sopas, caldos, moquecas, docinhos e bebidas nos são generosamente ofertados. A atmosfera doméstica é, portanto, materializada como um território fértil e vital, propiciador de acolhimentos e processos de cura, fortalecedor de redes solidárias para a formação e a emancipação das pessoas, ainda que coexistam tensões, divergências e conflitos. Paira em tudo uma vívida poesia do cotidiano. 

 

A pesquisadora Jéssica Nascimento, ao examinar os teatros negros da cidade de São Paulo, maneja a noção de Olaegbékizomba a fim de compreender como as festas de comunidade, os clubes, as celebrações e associações são tecnologias afro-brasileiras presentes na concepção de muitos espetáculos, e, num plano maior, na própria resistência dos povos negros no Brasil. Uma tradução possível desse termo iorubano seria: “Minha sociedade me trouxe felicidade, eu celebro”. Eu tenho uma história que se parece com a minha habita, em larga medida, este princípio que, mediante o festejo alegre e pulsante, plasma uma filosofia da vida comunal. 

 

Nesta ambiência ouviremos as reminiscências e os pensamentos de Tetembua Dandara, a irmã Mafoane Odara, a mãe Neuza Poli e a avó Dirce Poli. O exercício oralizado de reapresentar e recriar as memórias atua como um vigoroso gesto contra toda e qualquer forma de esquecimento em uma sociedade brutalmente colonial, racista e misógina. As suas narrativas passeiam por distintos tópicos, humores e localidades, delineando a presença estruturante, organizacional e sapiente das mulheres na condução da família, bem como as suas posturas políticas, nos mais diversos âmbitos sociais. As suas palavras, encarnadas em trajetórias de luta e beleza, soam como um antídoto para dissolver o abatimento, o niilismo paralisante, a descrença fatalista e o individualismo narcísico, que assombram os horizontes de jovens gerações cada vez mais assaltadas por tantas formas de violência. “Colocar a esperança em movimento”, relembra Mafoane ao citar a ativista Jurema Werneck, é crucial para fabular um projeto de país transformador e uma democracia de fato plena. Como griots, cada voz, direta e/ou indiretamente, transfigura, pelo hálito verbal, universos, imagens, espaços e tempos. Aliás, essa dimensão temporal é basilar na composição de Eu tenho uma história que se parece com a minha. Diferentes gerações e temporalidades se encontram, os festejos do passado e os do presente já prenunciam encontros vindouros. Os mais velhos e as crianças saboreiam o mesmo bolo, nas espirais do tempo, nos movimentos da ancestralidade.  

O alimento é não apenas uma dimensão que intensifica a partilha de tempos e espaços, mas é, em si, um saber, uma prática cultural, um conhecimento que nutre e é nutrido por todo o corpo. A encenação presenteia todos os sentidos, recusando a soberania recorrente da visão. A experiência estética é envolvente, integral, expandindo a tradicional ideia de teatro como lugar de onde se vê. O tato, o paladar, o olfato e a audição são igualmente convocados para este ágil jogo sinestésico. Os estímulos aromáticos, sonoros, gustativos e táteis se espargem por todo o espetáculo: das comidinhas às canções, dos deslocamentos pelo espaço às conversas travadas com os demais espectadores. Sabores e saberes, sensações e pensamentos não se encontram apartados, nem tampouco ocupam posições desiguais, segundo uma limitante perspectiva racionalista. “Sinto, logo posso ser livre”; este vibrante aforismo, proferido pelas mulheres daquela família, condensa uma sabedoria que encontra no sentir uma reflexão sobre a vida, um modo de se embrenhar, sem amarras, no mundo, no presente, na existência.

 

Eu tenho uma história que se parece com a minha acolhe e estimula a autonomia do público. A obra, bastante porosa e ancorada na fluidez do convívio, deixa várias possibilidades livres. O espaço pode ser ocupado de inúmeras formas; os alimentos, na mesma linha, são degustados conforme o desejo das pessoas; conversas podem ser travadas entre espectadores e estes com as artistas; até a antiga vitrola fica à disposição para quem quiser propor uma trilha sonora. Ouvir e falar, ensinar e aprender concomitantemente. A porta permanece sempre aberta. Há, evidentemente, dispositivos e conduções, mas tais recursos não se convertem em imposições de significados ou em trajetos acachapantes. Como fruidores, desempenhamos um trabalho de composição e recomposição a partir de um variegado feixe de estímulos e elementos cênicos.  Assim sendo, o lugar e a presença do público, de algum modo, se aproximam daquilo que Augusto Boal concebia como espect-atores: reassegurar o caráter ativo e cocriador da plateia na cena teatral e na cena do mundo social, destruindo uma postura passiva, distanciada e meramente contemplativa. Observar e agir; eis a síntese que o eminente teatrólogo brasileiro formula para redefinir o papel estético e político do público: “o povo reassume sua função protagônica no teatro e na sociedade”, diz-nos ele. 

 

Entrecruzando toda a concepção espetacular está uma abrasadora ética do cuidado, expressa em inumeráveis delicadezas e aconchegos. Eu tenho uma história que se parece com a minha instiga e aviva a criação de laços e o adensamento de vínculos, instaurando, ainda que momentaneamente, uma comunidade plural. A vocação do trabalho dirige-se ao grupo, não ao individualismo; ao compartilhamento, não à fragmentação solipsista. Nesse sentido, o espetáculo consubstancia um valor ético e estético muito significativo para as culturas negras, como nos explica Leda Maria Martins: “No escopo desse pensamento, o belo nunca é desinteressado ou periódico. Para adquirir a categoria de belo, há que ser necessariamente um benefício do e para o coletivo”. Em uma sociedade que, insistentemente, apregoa a ideia neoliberal de sujeitos fechados e autossuficientes, o trabalho de Tetembua Dandara insiste na importância de forjarmos coletividades e laços, confrontando, pela sensibilidade dos encontros, a sistemática degradação de nosso senso de pertencimento social. Esta é uma dimensão elementar para o fortalecimento de qualquer princípio verdadeiramente democrático. 

 

Guilherme Diniz é pesquisador e curador do projeto O teatro e a democracia brasileira.

Galeria de fotos

Fotos de Tetembua Dandara e Mariana Chama. Clique sobre as imagens para ampliá-las.

Ficha técnica e artística

Concepção e performance: Tetembua Dandara
Performance: Dirce Poli, Neuza Poli e Mafoane Odara
Pensamento visual: Daniela Alves, Matias Ivan Arce e Renan Marcondes
Fotos: Tetembua Dandara e Mariana Chama
Vídeo: Bruna Lessa e Cacá Bernardes | Bruta Flor Filmes
Iluminação: Gabriele Souza
Cenotécnico e técnico de cena: Matias Ivan Arce
Técnico de som e técnico de cena: Cauê Gouveia
Produção e técnica de cena: Mariana Dias e Tati Mayumi
Direção de produção: Tetembua Dandara

Críticas e textos

por Daniele Avila Small

A dramaturgia de Tetembua faz uma operação bastante sofisticada. Ela nos apresenta as regras básicas, pré-combinadas, mas sem impor um programa performativo. O programa está lá, mas passamos por ele como se estivéssemos à deriva. Do tanto que fica, entre os docinhos do final, levo comigo a proximidade entre o teatro e a festa por um viés que não era evidente para mim, mas que passou a ser depois do relato inicial da artista: a festa como um lugar de escuta.

por Carolina Wos

A imagem-dispositivo de Dandara, da presença materializada das gerações de mulheres da sua família, pode ser sintetizada pelo poema Vozes-Mulheres, de Conceição Evaristo, que é lido em cena por Neuza Poli, mãe de Tetembua Dandara: “A voz de minha filha recolhe todas as nossas vozes” e vislumbra: “o eco da vida-liberdade”.

por Artur Kon

Assim, a performance torna possível “pensar e discutir a negritude para além dos estereótipos. Somos muito maiores que os lugares que querem nos limitar. Não precisamos contar só histórias de sofrimento, porque não celebrar essas mulheres em vida?”. Ou poderíamos dizer: busca fazer comunidade para além da identidade comum já disponível numa produção majoritária.

por Amilton de Azevedo

Na presença multigeracional de Eu tenho uma história que se parece com a minha, o que permanece e o que muda: o resgate da ancestralidade enquanto fundamento e cotidiano, a militância como “colocar a esperança em movimento”, as relações familiares, um trânsito entre memória individual e processo social.

EU TENHO UMA HISTÓRIA QUE SE PARECE COM A MINHA

escritas e inscrições negras na contemporaneidade

Playlist das conversas - 08/2022

4 Vídeos

O livro

Pilhas de livros com capas brilhantes apresentando imagens de tiras de filme, dispostas sob iluminação roxa sobre um fundo escuro. Foto: Tetembua Dandara

TETEMBUA DANDARA - DIRCE POLI - NEUZA POLI - MAFOANE ODARA - Eu Tenho Uma História Que Se Parece Com a Minha - São Paulo: Ed. das Autoras, 2022

Essa história que se parece com a minha é um livro fotográfico concebido por Tetembua Dandara, com espaços em branco (e preto) que se estabelecem num diálogo de imagens, e poucas palavras, entre uma neta e sua avó Dirce Poli, de 93 anos, com interferências de sua mãe, Neuza Poli, e de sua irmã, Mafoane Odara. Um ensaio que mescla fotos de diferentes tempos buscando as histórias que ainda precisam ser contadas.

Tetembua Dandara

Tetembua Dandara é performer, fotógrafa e produtora cultural. É bacharel em artes cênicas pela Unicamp e especialista em gestão cultural contemporânea pelo Instituto Singularidades e Itaú Cultural.

 
Sua atuação se concentra nas áreas do teatro e da dança contemporânea. Dedica-se à produção em formatos horizontalizados, trabalhando em colaboração com coletivos e em parcerias de criação. Participa ativamente das criações artísticas dos coletivos Cia. das Atrizes (desde 2008), Cia. LCT (desde 2010), Pérfida Iguana (desde 2015) e Grupo do Trecho (desde 2017).
 
Parcerias e colaborações com outros grupos e artistas, como Grupo MEIO, UltraVioleta_s, Leandro Souza, Grupo Folias D`Arte e Bruta Flor Filmes, também são parte fundamental de sua prática, buscando “burlar o sistema” e concretizar outros imaginários possíveis.

Esta é a página de um espetáculo selecionado no âmbito do projeto O teatro e a democracia brasileira. As informações nela contidas são de responsabilidade de Tetembua Dandara, excetuando-se o texto do curador do projeto, sendo esse de responsabilidade da Foco in Cena, proponente deste projeto. Caso encontre um erro ou divergência de dados, favor entrar em contato através do e-mail contato@focoincena.com.br

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