Ir para o conteúdo

Trilhas da Cena

HOMEM CAVALO & SOCIEDADE ANÔNIMA

Cia. Estável de Teatro (SP)

Direção: Andressa Ferrarezi

Estreia: setembro de 2008

Atualizada em 22/04/2025

Sinopse

O espetáculo apresenta um cruzamento de situações sobre trabalho, moradia e consumo, costurado pela fábula de um homem animalizado e explorado em seus esforços por sobrevivência, como metáfora das impossibilidades, ilusões e contradições estampadas em nosso cotidiano. A obra materializa com fragmentos de poesia áspera a velha exploração do homem pelo homem. A obra épica conjuga a narrativa fabular com recortes de cenas, muitas vezes independentes, com tênue ligação temática e que, na somatória, despejam sobre nossas cabeças uma contumaz análise do capitalismo. É, entre outras, a fábula de um homem que puxa seu patrão acomodado sobre uma carroça. O “jovem trabalhador” (nome do personagem).

O espetáculo

Homem Cavalo & Sociedade Anônima materializa com fragmentos de poesia áspera a velha exploração do homem pelo homem. A obra épica conjuga a narrativa fabular com recortes de cenas, muitas vezes inde- pendentes, com tênue ligação temática e que, na somatória, despejam sobre nossas cabeças uma contumaz análise poética do capitalismo. É, entre outras, a fábula de um homem que puxa seu patrão acomodado sobre uma carroça. O “jovem trabalhador” (nome do personagem) tem pensamentos doloridos pela bruteza cotidiana, tem a perda de sua humanidade pela violência expropriadora de sua força, de tal modo que passa a se assemelhar a um animal. A brutalização sem saída dos rinocerontes de Ionesco é aqui revista num gutural relincho humanizado. Como se as baratas de Kafka fossem muitas e seguissem o luar e tivessem de roer as mazelas da sociedade que as construiu. A dureza dos cascos convertida no “soco de mãos grossas no rosto cínico do Sr. Dr. Patrão” apresenta a urgência e atualidade da luta de classes. Não tão simples, HC&SA demonstra como o “patrão” opera dentro de cada indivíduo atomizado pela competição imposta nas regras de mercado. Ora, como a ideologia da classe dominante se espraia por todo o ser social, portanto todos nós produzimos e reproduzimos as relações de opressão.

A terceirização e a precarização do trabalho, onde um “empreendedor” (varredor de rua) cria uma equipe de desempregados e explora a sua força de trabalho para fazer o trabalho que ele deveria, ilustra a questão. Síntese clara e irônica dos que acreditam ter decifrado o enigma da exploração e simultaneamente buscam acumular riquezas seguindo os ditames da com- petição empreendedora. A cortante sátira põe foco na miséria das relações tidas como naturais e na culpabilização individual pelo êxito ou fracasso profissional. Está em cena o ultra-individualismo reificador capaz de despolitizar a existência humana e celebrar o mundo do consumo.

A dita “classe média” tem uma cena específica. Aí sim, conforme Ionesco, a brutalização sem volta, a estupidez dos desejos fetichizados de modo a converter as personagens em seres cegos, mediando a vida por aparelhos telefônicos e protegendo-se do mundo real. Desfilam ainda: moradores de rua, bêbados, loucos, desesperados, aleijados, bandidos colocados em relação, não com a Lombroziana concepção fenotípica, ou fardo, ou sina, ou destino, mas com a complexa relação de tecidos sociais e formas de produção da vida capazes de submeter pessoas a papéis escolhidos conforme as circunstâncias.

 

Fonte: COMPANHIA ESTÁVEL DE TEATRO. Das margens e bordas: relatos de interlocução teatral. São Paulo: [s.n.], 2011. p. 92-93.

Contra a barbárie na exploração do trabalho e na mercantilização do teatro

O período inicial sobre o qual nos detivemos em nossa pesquisa, a partir do ano de 1985, marca o que chamamos de redemocratização. Por conta de um movimento político econômico neoliberal, hegemônico no pensamento global e com claros reflexos locais, esse é um período marcado por uma presença mais mercantil do teatro. Nesse cenário, o teatro de grupo se encontrava em mais um dos seus momentos de crise, uma crise caracterizada não só pelas dificuldades nas formas de produção como também no seu aspecto estético-político. 

 

O surgimento da Lei Rouanet em 1991, criada inicialmente como uma forma de ampliar o financiamento da cultura por meio da isenção fiscal, de alguma forma agrava esta crise, já que as empresas interessadas nesse processo estão mais focadas em divulgar sua marca. Isso acaba por enfatizar a realização de um teatro mais comercial. Inconformados com este cenário, alguns artistas e grupos de teatro, bem como atores diversos do movimento cultural, criaram, em 1999, o movimento “Arte Contra a Barbárie”  na cidade de São Paulo. O movimento, que inicialmente buscava denunciar o fato de que a Lei Rouanet não atende as necessidades de muitos artistas e grupos, vai ganhando solidez política ao longo dos anos. Isso se dá pela sua capacidade de mobilização e também por colocar em debate os caminhos do teatro contemporâneo. A criação do jornal O Sarrafo é  um marco no processo de ampliar o debate sobre a cena naquele momento.

 

Como resultado dessa mobilização, o movimento conseguiu uma grande vitória, a criação da Lei Municipal de Fomento ao Teatro da Cidade de São Paulo. O debate sobre o financiamento público da cultura encontrou, naquele momento, um mecanismo inovador que, apesar de alguns percalços nos últimos anos, se mantém como uma política eficiente de fomento a grupos na cidade. 

 

A Companhia Estável de Teatro, criada em 2001 em São Caetano, região do ABC Paulista, surge justamente no auge do movimento e se integra a ele, tendo sido contemplada diversas vezes pela Lei de Fomento. A companhia considera que toda obra artística é política, mas busca se distanciar do sentido mais imediatista e partidário da palavra, entendendo a política como as relações do indivíduo com a sociedade e a exploração do trabalhador no capitalismo.

Homem Cavalo & Sociedade Anônima, de 2008, é resultado de um processo de pesquisa imersivo na realidade de homens albergados no Arsenal da Esperança, antiga Hospedaria dos Imigrantes, que na época da realização do espetáculo acolhia cerca de 1.500 desabrigados.

Andressa Ferrarezi, diretora do espetáculo, em depoimento para uma matéria de Gabriela Mellão para a Folha de São Paulo publicada em outubro de 2008, acha necessário “retratar o vagar não pela aventura, mas pelas faltas”. O espetáculo reúne histórias sobre a realidade rotineira dos moradores do Arsenal, microcosmo representativo da sociedade contemporânea. Homens obrigados a aceitar “salários de fome”, ou a mentir sobre a condição de albergado para se manter no emprego, são retratados na trama, que tem como fio condutor a fábula de um trabalhador animalizado pelos esforços por sobrevivência. Na mesma reportagem, a jornalista situa a montagem na trajetória da Cia. Estável, comentando que “a residência artística no Arsenal radicaliza a experiência do grupo em projetos socioculturais – iniciada com a comunidade de Cangaíba, na zona leste de São Paulo, durante a ocupação do teatro Flávio Império, entre 2002 e 2005”. 

 

A experiência de participar de Homem Cavalo & Sociedade Anônima, de entrar no albergue, conviver temporariamente com os albergados e sua realidade, é fundamental nesse trabalho. A proposta, a partir da sua dramaturgia, é a de estimular os participantes a refletir sobre como os processos de opressão na sociedade estão disseminados a tal ponto, que muitas vezes os assimilamos ao nosso cotidiano.

 

O que parece caracterizar a Cia Estável é a busca pelo desenvolvimento da relação entre o teatro e a classe trabalhadora. Seja retratando o mundo do trabalho em suas dramaturgias, como também procurando desenvolver estratégias para as lutas dos trabalhadores do teatro. Seus trabalhos buscam estar próximos daqueles com quem querem dialogar e provocar reflexões na população de modo geral, ocupando a rua e os espaços onde as pessoas estão vivendo suas dificuldades e travando suas lutas.

 

Homem Cavalo & Sociedade Anônima é um exemplo disso. A peça é uma provocação para que entendamos os mecanismos de opressão e um caminho para contribuir no processo de  construção coletiva de uma verdadeira cidadania.

 

Paulo Mattos é pesquisador e curador do projeto O teatro e a democracia brasileira.

Galeria de fotos

Esta galeria contém fotos de  Jonatas Marques e Betina Humeres.
Os créditos específicos estão em cada fotografia. Clique sobre elas para ampliar.

Vídeos

Autor:  Evaldo Mocarzel

Documentário dirigido por Evaldo Mocarzel. O filme é conduzido pelas apresentações do grupo de teatro Companhia Estável com o espetáculo que dá nome ao documentário em locações como o Arsenal da Esperança, casa de acolhida para cerca de 1500 homens em situação de rua no Brás, zona leste de São Paulo; também na Flaskô, fábrica ocupada pelos próprios trabalhadores no município paulista de Sumaré; e ainda na Escola Nacional Florestan Fernandes, do Movimento Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Guararema, no interior do Estado de São Paulo.

 

Produção: Casa Azul

Direção: Evaldo Mocarzel

Direção de Produção: Letícia Santos

Direção de Fotografia: Cleisson Vidal e André Chesini

Montagem: Ricardo Farias

Supervisão de Edição de Som: Miriam Biderman e Ricardo Reis

Edição de Som: Débora Morbi e William Lopes

Espetáculos na íntegra

3 Vídeos

ficha técnica

Elenco: Daniela Giampietro, Di Marina Freitas, Maria Carolina Dressler, Nei Gomes, Osvaldo Hortencio, Osvaldo Pinheiro e Sandra Santanna.
Direção: Andressa Ferrarezi
Assistência de direção: Luciano Carvalho
Núcleo de dramaturgia: Andressa Ferrarezi, Daniela Giampietro, Luciano Carvalho e Osvaldo Hortencio
Orientação de dramaturgia: Cássio Pires
Preparação corporal: Maria Carolina Dressler
Direção musical e músicas: Osvaldo Hortencio
Orientação musical: Bakhy
Cenário e adereços: Luís Rossi
Núcleo de figurino: Maria Carolina Dressler, Maria Eunice e Sandra Santanna
Iluminação: Erike Busoni
Operador de luz: Marcus Filomenus e Luiz Calvvo.
Equipe técnica: Flávia Morena, Sidney Nunes, Maurício Hiroshi e Zeca Volga.

dramaturgia

Crítica

sobre homem cavalo & sociedade anônima

Alexandre Matte

 

“O espetáculo rigorosamente épico: na escolha e modo de exposição do tema (fábula fragmentada e repleta de solos narrativos), nos expedientes a partir dos quais o espetáculo vai se desenhando no tempo e no espaço e no local de apresentação (Arsenal da Esperança), repleto de homens recolhidos. É impossível assistir ao espetáculo e não perceber os protagonistas daqueles fragmentos na cena e fora, mas tão perto, dela. Normalmente circunspectos, alguns desses homens – cujas próprias histórias lhes são (re)apresentadas – comentam, tentam interferir, mas sem saber talvez que, a despeito de tudo, e parafraseando o poeta maior, no poema Infância, que suas histórias, em processo de revisitação, podem ser mais bonitas que aquela de Robinson Crusoé.”

 

Clique aqui e leia o texto completo.

Cia Estável de Teatro

A Cia. Estável de Teatro fundada em 2001, tem como premissa a criação artística em conjunto com a comunidade onde se insere, pois o contexto sociopolítico, que cerca um acontecimento, é definidor de seus caminhos e possibilidades. Desde a ocupação do Teatro Municipal Flávio Império, a Cia. Estável prevê em seus projetos uma diversidade de ações culturais e artísticas que têm como objetivo a interferência direta na relação com os interlocutores e nos resultados estéticos de seus espetáculos.

 

O trabalho de criação é pautado no modelo do processo colaborativo, as funções são rodiziadas pelos integrantes do coletivo, os cachês são iguais e as decisões são tomadas coletivamente, sem hierarquização. Os textos teatrais escolhidos abordam temas sociais e funcionam como fio condutor para a criação da dramaturgia cênica, porém com o objetivo de aproximar as ações do texto ao cotidiano do público, são feitas adaptações de linguagem e conteúdo, fomentando a troca com a comunidade.

Esta é uma página de um espetáculo selecionado no âmbito do projeto O teatro e a democracia brasileira. As informações nela contidas são de responsabilidade da Cia. Estável de Teatro na pessoa de Osvaldo Pinheiro da Silva, excetuando-se o texto do curador do projeto, sendo esse de responsabilidade da Foco in Cena, proponente deste projeto. Caso encontre um erro ou divergência de dados, favor entrar em contato através do e-mail contato@focoincena.com.br

Acesse via celular ou tablet e compartilhe.

Compartilhe esta página em outro dispositivo móvel.

QUER TER PÁGINAS NO TRILHAS DA CENA?