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Trilhas da Cena

Uma boneca no lixo

de Cristiane Sobral (DF)

Direção: Hugo Rodas

Estreia: 1998

Atualizada em 14/04/2025

Sinopse

O espetáculo é um monólogo musical que discute a temática da “diferença” num país multicultural. É a estória de um bebê negro encontrado por uma enfermeira japonesa numa lata de lixo, na periferia da Grande São Paulo. A partir daí, vários personagens buscam soluções diante do conflito gerado pelas diferenças. O texto é pontuado por músicas executadas pelo grupo de percussão Asé-Dudú.

O espetáculo

Uma boneca no lixo, peça teatral escrita e encenada por Cristiane Sobral — uma das principais artistas negras do Brasil —, surgiu como seu trabalho de graduação no Bacharelado em Interpretação Teatral da UnB, instituição onde se tornou a primeira atriz negra a se formar.

 

Com estreia em 1998, a obra é um marco no teatro brasileiro por abordar questões raciais, de gênero e classe, denunciando as opressões enfrentadas pela população negra, em especial as mulheres, através de violências física, psicológica e institucional. Com linguagem crítica e poética, Sobral transgride estereótipos e valoriza a subjetividade e intelectualidade das mulheres negras, transformando o palco em espaço de reflexão social.

A montagem original, dirigida por Hugo Rodas, contou com a participação do Grupo Asé Dudu, grupo musical afro-cultural fundado em 1986, que interpreta os ritmos da cultura negra utilizando instrumentos de percussão em recriações de diversas composições do repertório brasileiro e da diáspora negra.

 

A peça foi premiada pelo Governo do Distrito Federal (1999) por seu relevante impacto artístico e político e circulou por festivais como o de Teatro Negro da UFMG (2020) . Em 2018, ganhou nova montagem em Brasília para celebrar seus 20 anos, reafirmando-se como obra atemporal e necessária.

 

Inserida na trajetória de Sobral — que inclui poesia, contos e outras peças como Esperando Zumbi —, a obra reflete seu compromisso com o combate ao racismo, a justiça social e a valorização da cultura afro-brasileira.

Revirar o lixo, refundar teatros

Em Uma boneca no lixo deparamo-nos com um amplo painel composto por flashes do cotidiano, por recortes da vida doméstica e por breves narrativas que, em conjunto, explicitam, de um lado, os instrumentos de discriminação racial incrustados na sociedade brasileira, e, de outro lado, as insurgências e as alegrias de sujeitos negros dispostos a confrontar um status quo excludente e letal. A dramaturgia fragmentária, concebida por Cristiane Sobral, apresenta, como em instantâneos, os impactos do racismo na infância, as atitudes insubmissas de mulheres negras diante das violências de gênero e de raça, bem como as memórias familiares (reais e fabuladas) da autora. Tais paisagens de dor, de prazer e de luta são evocadas pelas metamorfoses psicofísicas de uma atriz negra cuja perspectiva ética, política e estética questiona não apenas nossos históricos abismos sociorraciais, mas a própria arte teatral, discutindo como, historicamente, as artes cênicas brasileiras replicaram mecanismos de marginalização, de estigmatização e de apagamento, sobretudo no seio de um país que entroniza a brancura como ideal de humanidade e de beleza. 

Representação artística de um bebê deitado de costas, estendendo os braços em direção a um tamborete.. O fundo apresenta formas abstratas em tons quentes, criando uma atmosfera texturizada e onírica. Arte: Manu Militão
Ilustração: Manu Militão | @manumilitaoart

Cristiane Sobral é escritora, artista cênica, professora e pesquisadora teatral. Tanto em sua escrita literária, quanto em sua produção acadêmica, a criadora, há muito, toma as experiências históricas e políticas da negrura como eixos a um só tempo críticos e poéticos, desestabilizando desigualdades e propondo experimentações artísticas a partir dos repertórios vivenciais e culturais da população afro-brasileira. De acordo com a estudiosa Vera Lúcia da Silva Sales Ferreira, “o eu poético [de Cristiane Sobral] se mostra consciente de possuir uma força vital que o torna capaz de se recuperar de todos os constrangimentos […] e escancara, para o mundo, o orgulho de ser negro”. Avultam, nos textos da autora, as subjetividades, os pensamentos, os desenhos psicológicos e afetivos de distintas mulheres negras em suas agências individuais e coletivas ante uma realidade sanguinolenta. 

Uma boneca no lixo porta ainda mais contribuições para se pensar nas relações entre teatro e democracia no Brasil. Primeiramente, esta peça, escrita e estreada em 1998, constituiu o trabalho de conclusão de curso de Sobral, tornando-a a primeira atriz negra formada no Bacharelado em Interpretação Teatral da Universidade de Brasília. Este fato, per se, põe a descoberto as exclusões e as desigualdades raciais inscritas no ensino superior brasileiro, sobretudo nos anos 90, ou seja, um contexto histórico desprovido de sistemáticas políticas de ações afirmativas que visassem aumentar o acesso de pretos e pardos nos cursos de graduação e pós-graduação. As pesquisas de Ricardo Henriques, por exemplo, revelam, na década de 90, o imenso abismo educacional presente no Brasil: as taxas de evasão escolar, de analfabetismo, de anos de estudo e de acesso às universidades são imensamente piores para a população negra do que para a população branca, comparativamente. Lembremos que nossas primeiras experiências de políticas de cotas sociais e/ou raciais datam de 2003 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e de 2004 na UNB, onde a atriz se formou. A famosa lei nº 12.711 – a partir da qual as instituições federais ficam obrigadas a reservar vagas para alunos egressos das escolas públicas, para negros e para indígenas – é apenas de 2012. Uma boneca no lixo, enfrentando, pois assim, todas as mórbidas estatísticas, nasceu, a despeito dessa conjuntura educacional violentamente iníqua. Segundo Darcy Ribeiro, o grande idealizador da UNB, esta instituição simbolizava “a cristalização, como utopia concreta, das aspirações mais profundas da intelectualidade brasileira […]”, dando vida a um projeto de ensino contrário ao dogmatismo catedrático, mais democrático em sua estrutura pedagógica e voltado para os problemas nacionais. Ainda assim, esta peça de Cristiane Sobral, ao assumir o teatro como um vetor estético e político, nos mostra como a efetiva participação dos segmentos negros não se tornou um fato concreto nesse projeto universitário, em tese, tão revolucionário. 

Uma mulher negra dança e canta vestida com um traje branco e um adorno de cabeça com penas e flores. Ela usa colares em camadas e pulseiras douradas, criando uma atmosfera festiva e vibrante contra um fundo drapeado. Foto: Luiz Alves
Foto: Luiz Alves

Em segundo lugar, Uma boneca no lixo indaga o racismo incrustado no teatro brasileiro, apresentando o pungente relato de uma jovem negra que decide ser atriz apesar das expectativas sombrias que se avizinham. As dificuldades profissionais, as discriminações raciais presentes no campo cultural, as estereotipias veiculadas por inúmeras ficções dramatúrgicas não demolem os objetivos artísticos desta personagem munida de referências que a inspiram, como o líder afro-americano Malcolm X, o seu pai e as mulheres negras de sua família. Na quinta cena, a sonhadora menina relembra o episódio em que uma professora, carregada de preconcepções racistas, diz a ela que o único papel que lhe cabia, na montagem teatral da escola, era o de bruxa. A resoluta criança afirma: “Depois disso, eu fiquei muito cansada, e resolvi escrever as minhas próprias peças de teatro. Convidei alguns coleguinhas da minha rua e montamos várias peças de teatro, várias mesmo. Sabe que até o papel de Julieta eu fiz?”. Este trecho evidencia algo caro à poética de Cristiane Sobral: uma sólida autoralidade para capitanear os próprios projetos, formalizando, esteticamente, suas visões de mundo, suas aspirações e demandas, propondo uma contundente pesquisa de linguagem no interior de uma universidade pública. É precisamente esta uma das grandes significações de Uma boneca no lixo, isto é, não se curvar às imposições sociais e nem tampouco àquelas determinações excludentes tão naturalizadas pelo teatro, tais como as noções de  physique du role, que, em uma realidade desigual como a nossa, apenas reforça hierarquizações entre humanidades. 

 

Diante dessas áridas circunstâncias, a atriz não só formula um caminho artístico, como também não abre mão do devido direito de pensar a si mesma e o mundo ao seu redor por meio do teatro. Uma boneca no lixo, assim sendo, denuncia as lacunas racistas cravadas no palco brasileiro, mas não se esgota aí. A montagem também anuncia outras possibilidades dramatúrgicas, modos outros de reelaborar a matéria cênica, partindo não apenas das agruras, mas especialmente dos sonhos de uma mulher negra.

 

Guilherme Diniz é pesquisador e curador do projeto O teatro e a democracia brasileira.

ficha técnica

Direção: Hugo Rodas

Texto, músicas e interpretação: Cristiane Sobral

Cenários: Guto Viscardi (In Memorian)

Figurino: Guto Viscardi (in memoriam), Lydia e Mali Garcia – (Bazafro)

Fotografia: Luiz Alves

o projeto

o livro (dramaturgia)

O livro com a dramaturgia de Uma boneca no lixo é uma publicação da Editora Aquilombô – BH.

Cristiane Sobral

Cristiane Sobral é carioca e vive em Brasília. É mãe, atriz, professora, escritora e dramaturga. Mestre em teatro (UnB). Tem 13 livros publicados, em vários gêneros e textos em publicações internacionais. Seu livro mais recente é Caixa Preta, contos, Ed. Me Pariô, SP. Multiartista e performer, percorreu, como palestrante e oficineira, Angola, Colômbia, Portugal, Guiné Bissau, Equador, África do Sul e os Estados Unidos, onde fez tour por 9 universidades, inclusive Harvard. Em 2023, foi finalista do prêmio Jabuti de literatura. Também representou o Brasil na Feira do Livro de Maputo, Moçambique, e conquistou o prêmio Sesc + Cultura. Seu espetáculo de teatro mais recente é Esperando Zumbi. Dirigiu a Cia de Teatro Negro Cabeça Feita por 18 anos. Seu livro, Não vou mais lavar os pratos, Ed. Malê, está na lista obrigatória do vestibular da UESB (BA) e na lista do PAS –  Vestibular (UnB).

Uma mulher negra usando um turbante azul e grandes brincos de argola olha para o lado. Ela levanta a mão para ajustar o turbante, com longas unhas vermelhas e várias pulseiras no pulso. O fundo é desfocado com vegetação e um muro. Foto: Thaís Mallon
Foto: Thaís Mallon | @thaismallon

Esta é a página de um espetáculo selecionado no âmbito do projeto O teatro e a democracia brasileira. A atualização dos seus dados  bem como as informações nela contidas são de responsabilidade da Foco in Cena, proponente deste projeto. Caso encontre um erro ou divergência de dados, favor entrar em contato através do e-mail contato@focoincena.com.br

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